segunda-feira, 16 de abril de 2012

Modernos em Cômodos

Esse texto foi elaborado a pedido de Lia Magalhães para o fanzine Polifonia (www.facebook.com/ZinePolifonia) com a temática "O Incômodo". O trabalho visual é de autoria dela.


A casa era tão velha quanto o próprio mundo. A variedade dos seus hóspedes também vinha sendo mundial. No entanto, os de que ora se trata só representavam a segunda abrangência. Os únicos velhos aqui eram os que sempre se fazem necessários para o bem-estar das crianças. Estava em curso uma olimpíada de matemática, e havia na casa três grupos de competidores. Eram chineses, indianos e europeus. Cada um dos três era uma equipe com algumas crianças assistidas por um tutor. Todos estavam, a seu modo, concentrados na preparação para a próxima fase da disputa.

No cômodo das crianças chinesas, a situação era tensa. Já havia algum tempo que vinham incorporando em seus estudos os instrumentos eletrônicos que tanto facilitam o trato da matemática. O uso desses aparelhos já fora vedado nas olimpíadas. Não o era mais, de corriqueiros que se tornaram. Não obstante, o tutor dessas crianças insistia em que elas deviam usar o ábaco. Segundo pensava baseado em experiência milenar, o uso prolongado desse instrumento levava a que as contas passassem a ser feitas de cabeça em tempo mínimo. Podia-se dispensar qualquer aparelho. Assim, entendia que esse método era melhor do que o que dependia de instrumentos eletrônicos.

Nesse conflito, o tutor era inflexível. Afinal, concursos figuravam na base da sociedade chinesa por tempo incontável. Seus métodos foram forjados na experiência prática milenar. Não podia haver melhores. Como sempre ocorreu na China, bastaria repetir as práticas consagradas para subjugar qualquer cultura que lhe fosse adversária. Assim determinava o poder celestial. De nada adiantava as crianças mostrarem que os instrumentos eletrônicos faziam muito mais do que simples contas, projetando, inclusive, gráficos em três dimensões. Em meio a tanta insistência, o tutor não era senão chato. E tal se dava em tamanha intensidade que assim foi ficando fisicamente. Achatou-se até não conseguir mais se sustentar e cair. Terminou como um lençol, a que as crianças deram o devido tratamento: dobraram e deixaram encostado na mesa de cabeceira da cama.

Já no cômodo das crianças indianas, o caso era outro - embora não menos litigioso. Cada uma delas havia sido escolhida para formar a equipe por sua notória habilidade com específicas técnicas matemáticas. Para resolver qualquer problema, as diferentes atividades necessárias eram divididas entre os membros do time, que desempenhavam apenas as funções próprias de seu campo de atuação. Mas esse método já se mostrava antiquado pelo contato com crianças inglesas que estudavam em escolas indianas. Os problemas eram muitos. Caricata é a atuação na solução de um problema que concentra muito uma atividade que, embora com menos eficiência, também poderia ser desempenhada por outras crianças do grupo. A espera para que apenas aquela mais bem dotada da técnica necessária execute sua função torna a equipe muito lenta.

O tutor indiano, no entanto, não encontrava guia fácil para sua ação. Já havia algum tempo que observava o bom desempenho das crianças inglesas, a par de elas não executarem apenas as atividades determinadas como próprias suas já na ocasião de seu nascimento. Apesar dessa eficiência, a tradição inglesa não se mostrava facilmente extensível aos indianos. Os amantes de chá nitidamente buscavam apenas explorar os indianos, de modo que só estariam aptos a transferir sua cultura até o necessário para manter a dominação. Além disso, o tutor se via perdido em um emaranhado de distintas tradições que identificava como próprias suas. Várias delas concorriam para justificar de alguma forma aquela rígida divisão de trabalho. Insistindo nessa, o tutor indiano também ficou chato e foi dobrado como um lençol.

Completamente diversa era a situação dos estudantes europeus. Não que não houvesse conflitos - havia constantes. Entretanto, no caso deles, as divergências eram a base do próprio sucesso. Enquanto um disputava com o outro, cada um buscava dar o melhor de si. Disso resultava dinamismo, em que a equipe escapava descrições: estava em contínua mutação. Seu tutor, ao invés de dizer como deviam se comportar, intervinha topicamente para possibilitar que eles mesmos se encaminhassem para o sucesso. Esse era tanto maior quanto maior fosse a base de conhecimentos matemáticos de toda a equipe. Para ampliar essa, buscavam contato com outras culturas.


O intercâmbio entre as crianças asiáticas e as européias já vinha ocorrendo há muito tempo. Pela ausência dos tutores chinês e indiano, intensificou-se. Nesse processo, destacava-se a progressiva absorção de elementos europeus pelas crianças orientais, mudando radicalmente sua própria forma de atuar. Não era apenas uma mera substituição de modos. Aquilo que era próprio dos europeus era incorporado pelos chineses e indianos por processo de transformação que lhes era muito particular. Os resultados eram culturas em grande medida novas.

Com essa renovação cultural, no entanto, o peso do passado fazia-se sentir. Os velhos tutores, dobrados e encostados, exerciam pressão psicológica nefasta. Era como se os novos modos de proceder fossem censurados pelos lençóis. Alguma coisa tinha que ser feita para impedir essa influência.

Havia na casa um cômodo que nunca recebia hóspedes. Ele tinha um móvel muito antigo, todo feito de mogno e ferro. Era dividido em pesados gavetões. Guardava-se nele todo tipo de coisa que não mais apresentava serventia. Portanto, parecia o lugar ideal para acomodar os velhos tutores chinês e indiano. Quando uma coisa incomoda, alguma mudança é demandada para que deixe de ser incômoda. Agora, no entanto, invertem-se os fatores. Em tempo de incessantes mudanças, é a conservação que verdadeiramente está em cômoda.





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