domingo, 19 de agosto de 2012

O Insistente Erro de Calcular o Afeto


Fracasso atrás de fracasso. Agora, no fim, vejo que assim foi minha vida. Eu nunca quis ser um Dom Juan. Não me seria bastante. Amor, paixão, afeto, romance... muito da vida de muitos é gasto para realização de coisas como essas. Mas, se tantos estão buscando, por que é tão difícil encontrar? Todos olham para o mesmo lado, mas tomam caminhos muito diversos. O que me movia era mudar isso, fazendo com que cada um pudesse encontrar seu par da forma mais rápida e, sobretudo, com menos sofrimento. Os livros estão repletos não apenas de lágrimas, como também de sangue vertido por essa causa - veja já o primeiro clássico da literatura ocidental, em que Helena causou uma guerra. A vida dá exemplos menos drásticos, mas permeados de erros - por vezes tão bobos que completamente estúpidos. Eu pretendia fazer cessar esses erros que pareciam para todo lado tão recorrentes. Era assim que eu queria ser mais do que um Dom Juan: mais do que dominar a arte da conquista em benefício próprio, eu almejava que todos tivessem o máximo dessa habilidade e por igual. Como as pessoas se buscam mutuamente, o saber de uma deveria auxiliar o da outra. Tudo me parecia muito direto e elementar. Quase matemático.

E matemático fui ser eu. Entrei para a faculdade no curso de estatística. O plano era colher o máximo de dados, selecionar variáveis e criar um modelo capaz de prever a compatibilidade entre duas pessoas - tudo de antemão e a partir de uma simples descrição delas. Arrumei um emprego de barman em uma boate de segunda, onde eu era tido como um prestador de serviço subalterno - e, por isso, impressionantemente invisível. Foi o lugar ideal para colher os dados de que eu precisava, pois, enquanto mal era notado, pude observar privilegiadamente conquistas bem e malsucedidas. Eu era como uma sombra - sempre ao lado, nunca o centro das atenções. Não deu trabalho para encontrar um padrão. Em alguns meses, eu já tinha um modelo pronto. Na hora de colocá-lo em prática, no entanto, as coisas não foram tão bem. Os pares logo se desfaziam. Percebi que o erro estava no local de onde tirei os dados - afinal, em boates, as pessoas quase nunca estão interessadas em relacionamentos duradouros.

A nova estratégia atrasou notavelmente minha formatura - mas me pareceu óbvio que se eu quisesse algo que durasse, teria que despender muito de meu próprio tempo. Fui colher os dados na própria universidade. A cada horário de aula eu entrava em uma sala diferente. Não me interessavam as aulas em si. Eu ficava era observando as interações entre as pessoas - e eu não era o único. É impressionante ver como as pessoas se buscam nas aulas - sobretudo nas “menos empolgantes” (nada raras). A concentração comumente vai do professor para uma pessoa considerada atraente. Logo vêm as trocas de olhares, testes da reciprocidade da atração. Na sequência, as aproximações. E, assim, os pares vão se formando. Como eu era um igual, não tive dificuldade para observar tudo de perto. Ao longo de semestres, consegui dados massivos para incrementar meu modelo. Ele ficou mais robusto, e eu fui o orgulhoso responsável por encontros muito bem-sucedidos. Vários resultaram, inclusive, em casamentos. Mas, embora maior, a duração desses pares também não foi muito expressiva. Houve mais um problema. Pessoas jovens atraem-se em grande medida pela boa aparência, que o tempo fatalmente leva - e com ela vai a própria união. O bem também se corta pela raiz. Não que todos os pares de faculdade se desfaçam. No entanto, eu precisava fazer meu modelo transcender a aparência como causa de atração.

Pela segunda vez errei pela seleção de uma amostra muito restrita. Estava decidido a não o fazer novamente. Eu não tinha ideia do desafio que isso representava. Tornei-me especialista em notar sem ser notado nos mais diversos ambientes. No começo, eu me escondia atrás de arbustos, pendurado em galhos de árvores ou dentro de bueiros. Porém, o constrangimento de ser descoberto, ainda que não muito frequente, pedia outra estratégia. Passei a encomendar toda sorte de parafernália da ACME, sendo ultrapassado como seu maior cliente apenas pelo Coiote Coió em sua incessante busca pelo Papa-Léguas. Simples binóculos e microfones parabólicos terminaram sendo meus equipamentos preferidos. Percebi que a maioria das conquistas ocorria em locais de descontração. Passei a observá-los sem nunca estar eu mesmo descontraído. E minha tensão aumentava cada vez que o modelo demonstrava uma fragilidade. As conquistas iam progressivamente ficando menos previsíveis. O que funciona em alguns casos, falha em outros. O modelo teve que ir acolhendo regras que expressassem todas essas exceções - tantas que já parecia estranho falar em regras.

Regras estão no domínio da razão, que é um instrumento poderoso, mas não faz outra coisa senão organizar informações que vêm de fora dela. Essas informações, em si mesmas, não me parecem seguir tais regras - salvo a posteriori, quando do esforço para submetê-las ao império racional. A cada vez que eu descobria que meu modelo estava errado, dava um jeito de compatibilizá-lo com a nova informação. Ainda assim, eu sempre era surpreendido por uma nova desconformidade. Fui forçado a concluir que essa imposição da lógica racional ao âmbito afetivo não faz muito sentido. Na verdade, constatei o contrário: um evento contrário às regras parece fazer uma nova chama crepitar no coração - o inusitado é essencial para essa combustão. Além disso, eventos usualmente tidos por erros também têm seu charme. Gaguejar uma frase, desviar o olhar em uma encarada, enrubescer diante de um elogio, por exemplo, denotam fragilidade e parecem erros. Ainda assim, são atos muitas vezes encantadores. Se o correto for o que estiver em conformidade com regras racionalmente postas, o amor vive de erros. Perdi minha vida para perceber isso, gastando-a perseguindo uma quimera. Nunca corri o risco de me tornar um Dom Juan não porque não quisesse, mas por nunca ter sequer me dado uma oportunidade.