sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Chronos e Afrodite


A porta da casa se abria. E dessa vez era justamente para ele. Quão incontáveis foram as horas que gastara diante dessa mesma porta apenas para poder vê-la saindo apressada? E quantos dias tiveram frações dessas horas... ou melhor, quantos não tiveram? Por mais que fosse muito tempo, mesmo somados, todos os segundos em que a vira não chegariam ao que estava para acontecer. Sim, pois dessa vez seria ela abrindo a porta para apresentá-lo a sua avó, com quem mora só. Um amigo de amigo havia conseguido o bico de cuidador de idosos, para o tempo em que ela tinha que trabalhar e a avó ficava desamparada. Certamente os dois passariam mais tempo juntos naquele primeiro dia, pois as rotinas deveriam ser explicadas, ainda que basicamente.

O tempo. Coisa curiosa. Como podem todos os relógios marcar o mesmo quando as situações parecem tão distintas? O abrir da porta foi sucedido por uma situação em que o relógio, o mesmo velho companheiro, sequer foi consultado, e a situação em si, de todas, distinta. Não pôde ver seus olhos. Mal a face foi exposta e os cabelos deram as caras em espiral que seguia seu corpo tomando o rumo do outro lado do hall. Poderia dizer que exalava o cheiro do mais belo jardim, se um dia houvesse sido afeto a flores. Não faz mal. Jurava convicto que essa era a fragrância. O ar reverberou um curto “entre, venha cá!” que perdurou insistentemente em sua cabeça. O timbre era aveludado, mas o ritmo cadenciado. Exprimia o doce som decidido de quem dá ordens que são naturalmente seguidas. Deixou o dinheiro para pequenas compras e as mãos se tocaram. A textura não era a típica feminina. Havia pequenos calos e vários sulcos. Não combinava com as leves dimensões.

Quando se deu conta, estava de frente à velha senhora que o olhava apreensiva. Foi quando percebeu que estava tão envolto na forma que não capturou o conteúdo daquilo que lhe pareceu ordens que são naturalmente seguidas. A avó não podia falar. O AVC de que fora vítima também não lhe permitia muitos movimentos. No entanto, havia algo muito comunicativo em seus olhos. Rapidamente e sem pensar, foram criando uma forma de interação que, deixando as limitações à parte, permitia a satisfação das vontades da avó. Tudo era feito por meio de olhares e singelas elevações da sobrancelha. Se a senhora queria algo, olhava para a direção levantando a sobrancelha. Ele ia até o local do olhar até que, em tomando postura adversa à satisfação do desejo, novamente a sobrancelha era erguida. Assim, na tentativa e erro, as opções iam sendo descartadas até que restasse apenas a aspirada. A eficiência do método progrediu tão rapidamente que, por vezes, parecia algo telepático. Em pouco tempo ela chegou mesmo a formular pedidos de leitura de capítulos específicos dos livros que lhe eram caros. Era grande injeção de entusiasmo para ambos. Ao cabo, também a atividade de cuidador de idosos tornou-se amplamente prazerosa.

Ela entrou em casa agitada. Via-se que o trabalho não era grande fonte de prazer. De início, fez que não o notava em casa. Cumprimentou brevemente e se pôs a executar pequenas tarefas domésticas. Estranhamente, todas nos arredores dos outros dois, onde quer que estes estivessem. Percebeu a empatia entre eles e não fez sinal de que gostou. Comentou que suas recomendações não haviam sido seguidas. A velha deu de ombros. Ela insistiu no descumprimento e a velha baixou a cabeça. Temia perder a nova companhia. Apesar de surpreso, ele aproveitou para se orientar melhor sobre as rotinas a seguir. Os dias que se seguiram não foram muito diferentes desse primeiro, embora a sensação de novidade fosse se esvanecendo e sendo substituída por uma áspera atmosfera de ciúme. Nesse ponto, a companhia da avó era muito mais agradável do que a da neta.

Certo dia retornou à casa muito mais cedo. Suas mãos tremiam e ostentava ares de profunda ira. “Você não tem tratado bem a minha avó!” Primeiramente, a velha expressou enorme espanto, mas logo baixou o olhar. “Por que me diz disso?”. “Ela me falou”. Mas ela não fala... - pensou. Os dois ficaram se olhando. Essa era a primeira vez em que a mirava fixa e diretamente. O medo de perder o estimado emprego impediu que percebesse: já havia se afeiçoado muito à avó. Mas quando se deu conta, a neta beijava-o ardentemente. A surpresa foi acompanhada por um forte frio na barriga e grande vertigem. Para não cair, abraçou-a vigorosamente. Mais centrado, retribuiu o beijo de maneira apropriada. Logo percebeu que ela buscava orientar o aperto para pressionar seus seios. Ora um, ora outro, comprimia e relaxava. Ele notou que se erigia e, vexado, tentou disfarçar girando-se levemente. Ela impediu rápida e segura de si, com um entrelaçar de pernas e o encaixe da porção baixa da pélvis no corpo entumecido. O êxtase tomou conta de ambos. As roupas nunca houveram sido obstáculo tão complicado. Ainda assim, de repente, era entrave superado. O contato dos corpos era mágico. Tanto a pele do outro era ansiada avidamente quanto a própria pele era experimentada de forma diferente. Por dentro, parecia haver uma enxurrada. Os pontos corporais mais inusitados iam paulatinamente se transformando em vulcões erógenos. A intensidade era tamanha que os bruscos movimentos iniciais tiveram que dar lugar a suaves carícias. De súbito, foi formado o andrógino platônico. Não foi intencional e o momento sequer percebido. Talvez tenha sido naquele gemido mais forte. Será? Houve momentos de prazer tão intenso que chegavam a sufocar os gemidos. Certo é que a fusão dos corpos era plena, não importando o momento preciso em que se deu. Mesmo na superfície, seu entrelaçamento ao longo dos movimentos constantes tornava difícil identificar se as partes corporais eram de um ou de outro. Tudo parecia único. 

E, até ali, realmente era. Acontece que se seguiram vários outros eventos similares. Embora cada qual tivesse sua identidade, todos remetiam de alguma forma ao primeiro. Ao menos a paixão e o queimor pareciam iguais em intensidade. Ele passou a dormir na casa com as duas pessoas por quem nutriu maior afeto em toda a vida. Houve momentos de ciúme e necessidade de adaptação dos costumes envolvendo as três partes. Mas nada era tumultuado. O que faltava em uma das relações isoladas sobrava em outra, de modo que as situações fluíam com naturalidade para um equilíbrio, embora nunca estático. Sempre surgia um novo elemento a tornar a relação efusiva. Um deles, bastante desagradável. Alguns anos depois, a avó foi sendo acometida de uma enfermidade após outra. Foram tempos dinâmicos, mas tortuosos. Progressivamente foi ficando claro que a união estava muito próxima do fim. Mas foi mera ilusão. A velha partiu, mas não completamente. Seu corpo roto, como é natural para a idade, não mais se fazia presente. No entanto, a serenidade habitual de seu espírito permaneceu inspirando o casal, que mal via a hora para que a passagem do tempo trouxesse sabedoria a ensejar aquela saudosa comunicação telepática.