sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Passado Abaixo (ou Biografias de um Sabonete)


Na decisão, escolhe-se a alternativa que aparenta ser a mais apta à satisfação da vontade. Frustrada a expectativa, aumenta-se o valor das alternativas descartadas, que assolam o optante em relação a seu passado.


Mais uma vez era aberta a pesada porta metálica da loja. Era a primeira vez, no entanto, que da rua se podia ver aquele sabonete. Não que houvesse algo especial nele. Pelo contrário, aos seus lados e abaixo, estavam dúzias de outros idênticos. O que nunca ocorrera antes, porém, é não haver nenhum sobre si. Assim, o passar do dia foi ordinário para quase tudo e todos que por lá transitaram, mas não para esse sabonete. Pela primeira vez foi considerado uma opção de compra. Ora, sendo a venda a finalidade que o punha ali, tratava-se de profunda diferença. Mas o que é comum entre as coisas nem sempre lhes atribui a mesma rotina. Nessa loja, muito se podia dizer das distinções entre o cotidiano de cada um dos produtos que, ao fim, estava lá para o mesmo propósito: alienação. Veja o caso do perfume, por exemplo, logo ali tão perto. Do mesmo tipo, no máximo três caixas ficavam juntas. Por conta da variedade, o tempo gasto na escolha dos perfumes era sempre muito maior do que na dos sabonetes. Isso certamente lhes dava mais dignidade. Afinal de contas, são alternativas para uma escolha que tem basicamente a mesma contrapartida: entrega de dinheiro. Pois bem, se o substancial de tudo o que ali se encontra é ser objeto de uma decisão, nada mais natural do que entender como mais digno aquilo em que se deposita mais esforço para a escolha.


Ainda sobre a diferença entre os perfumes e os sabonetes, enquanto diversas pessoas - dos mais variados sexos, idades, e estilos - examinaram cada uma das caixas de perfume vizinhas, aquele sabonete, em particular, foi considerado apenas por duas pessoas. A primeira, uma jovem de quase 40 anos, vestindo terninho muito alinhado ao seu corpo - ainda atraente mesmo para jovens recém saídos da puberdade -, com postura decidida, como a de quem está acostumada a liderar. E foi exatamente essa personalidade que a impediu de levar aquele sabonete. Sua mão seguia uma linha perfeitamente reta na direção do sabonete. Um leve choque com um dos transeuntes, no entanto, impediu que se encontrassem. Como a jovem queria apenas um sabonete qualquer entre os tantos que lá havia, apanhou o que estava na outra ponta da nova linha, igualmente reta, assumida por sua mão. Certamente esse não teria sido o desfecho do encontro se se tratasse de um perfume.


Alguns bons instantes após, porém, um novo encontro ocorreu. Dessa vez, um efetivo. Nesse caso, não era tão fácil descrever o personagem. Não porque era dotado de personalidade muito singular, mas pelo oposto. De tão comum, era difícil identificar traços que o individualizavam. Era apenas um prosaico. Para apanhar o sabonete, sua mão não descreveu qualquer figura conhecida da geometria. Antes, caiu quase inerte sobre a pilha de sabonetes e se arrastou completamente desinteressada por diversos deles. O fechamento dos dedos para apanhar aquele específico sabonete foi tão casuístico que faria dos mais otimistas teóricos do comportamento humano tornar-se um cético sobre a possibilidade de encontrar leis que os antecipe. As demais características do prosaico eram igualmente desprovidas de ânimo. Era um vulgar desinteressante. Ao fim, no entanto, parece ter sido o casamento ideal para o sabonete, igualmente ordinário.


Os dois seguiram longo caminho dentro de um ônibus lotado. O sabonete estava na companhia de alguns outros poucos itens banais que satisfazem apenas necessidades corriqueiras de seus usuários, e que por isso mesmo nem são notados no cotidiano. Essa certamente não teria sido a situação do sabonete se fosse a jovem quem o tivesse pego, ou mesmo se fosse um perfume. No mínimo estaria na companhia de um. Por outro lado, se estivesse com objetos de maior nobreza, mais em xeque estaria seu próprio pedigree. Assim, talvez o sabonete tivesse mais valor para o prosaico do que para a jovem, mesmo desempenhando a mesma função. Nesse caso, o apreço provém de virtude que retira de si mesmo, e não do contexto em que se encontra. Muito conforto espiritual já foi encontrado no que se tornou máxima popular segundo a qual a companhia determina o caráter do acompanhado. Dizer com quem se anda, aqui, possui conotação ambígua. Se os acompanhantes não chegam a ter grande dignidade para transferir ao sabonete, ao menos são a causa de aquela que lhe é intrínseca ser enaltecida.


Chegaram ao seu destino. Era abrigo humilde, como se deveria imaginar. Na verdade, não passava de um barracão. Talvez fosse razoável esperar um pouco mais de distinção, mesmo tendo em conta que era o refúgio do prosaico. Essa expectativa era cabível mesmo desconsiderando qualquer comparação com a situação de a compradora ter sido a jovem, que provavelmente surpreenderia pelo requinte. O interior da edificação, no entanto, era aconchegante. Tratava-se mesmo de um lar. Viviam ali a esposa do prosaico e sua filha, bem como alguém ligado à família por vínculos tão oblíquos que é melhor chamá-lo apenas de aparentado. Era um núcleo familiar bastante pequeno, o que é incomum para esse ambiente sócio-econômico. Nesse ponto, a situação não seria diferente se tivesse sido levado pela jovem. Será mesmo que não? Na casa do prosaico, os habitantes não demonstravam grande ânimo com a vida. Na da jovem, com mais ou com menos pessoas, a situação decerto seria outra.


Após esse breve primeiro encontro, o sabonete foi acostado em um enorme armário do banheiro, único da residência, e por lá permaneceu abandonado por algum tempo. Era um banheiro simples, quase grosseiro. Talvez fosse mais apropriado para um sabão, o que diminuía o já baixo mérito então desfrutado pelo sabonete. Deixando isso de lado, o que estava reservado para ele? Pois, se o ambiente não era muito promissor, o contato com seus usuários poderia ser bastante gratificante. A esposa era extremamente dedicada ao trabalho doméstico para fazer daquela pobre residência um local mais agradável. Disso resultava grande sujeira em seu corpo, sendo a que mais necessitava do sabonete. Para ela, ele poderia representar a purificação que lhe daria o merecimento do usufruto do próprio labor. Na seqüência, a maior glória viria da limpeza do corpo da filha, comungando a purgação da sujeira tangível com a pureza natural da alma da inocente criança. A seguir, vinha o aparentado, a quem o sabonete poderia servir de meio para reforçar seu vínculo com a família. No momento do banho, todos, inclusive o aparentado, usariam o mesmo sabonete. Este seria um dos tão escassos elementos comuns entre eles. Por fim, havia o prosaico. De tão ordinário que era, serviria de descanso ao próprio sabonete: a par de todas as nobres funções que desempenharia, teria a chance de rotineiramente passar por uma experiência comum.


Após alguns dias passados dentro daquele armário, a esposa desempacotou o sabonete e o usou pela primeira vez. De fato, seu corpo estava imundo. O curioso é que, em algumas partes, formava-se espessa camada de sujeira, verdadeira casca. Parecia o começo ideal. Mas o banho logo mostrou a justificativa da sujidade. O sabonete mal fora usado. A esposa tinha verdadeira relação de simbiose com o lixo que se ia juntando na casa. O tormentoso àquela criatura era a limpeza. Mas ao sabonete ainda havia três boas oportunidades. A filha foi a próxima, e prometia ser o verdadeiro começo. Apesar da pouca idade, logo se viu que nada havia de inocente naquela menina. As brincadeiras que fazia durante o banho, nas quais envolvia o sabonete, eram próprias de adultos, e dos não muito comportados. Não havia pureza ali, mas a mais intensa malícia unindo corpo e alma. Faltava ao sabonete qualquer vocação para remover esse tipo de sujeira. O aparentado parecia promissor, mas, agora, exatamente por não pertencer propriamente àquele grupo de degenerados. Acontece que, justamente por isso, antes de usar o sabonete em seu corpo, deixava a água escorrer sobre ele até que boa parte de sua superfície fosse gasta. Para o aparentado, era como se fosse um novo sabonete, apenas seu. O motivo da repulsa era de todo compreensível, mas o desgaste sofrido pelo sabonete não parecia proporcional. Quanto ao prosaico, última esperança, pôde-se perceber em poucos segundos que ali nada havia de ordinário. O homem era obsessivo e metódico. O ritual era tão enervante que em nada podia representar descanso.


Foi nesse ritmo opressor que o sabonete ia passando ralo abaixo. Houve ainda uma ou outra situação que se afigurou, de início, como potencialmente satisfatória. Tais foram os casos das eventuais visitas que o usaram. Essas, no entanto, tratavam o sabonete com nojo, parecendo até que sabiam dos detalhes sórdidos do seu uso cotidiano. Também teve vezes em que foi usado na cozinha, mas apenas para limpar louças, panelas e talheres - finalidade muito aquém de sua própria vocação. Se tivesse sido pego pela jovem, certamente teria destino mais nobre. Se fosse um perfume... aí sim! Mas não foi nada disso, e terminou seus dias quase totalmente dissolvido e anexado artificialmente a outro sabonete, como uma muleta sua.


***


Mais uma vez era aberta a pesada porta metálica da loja. Era a primeira vez, no entanto, que da rua se podia ver aquele sabonete. Não que houvesse algo especial nele. Ao contrário, aos seus lados e abaixo, estavam dúzias de outros idênticos. O que nunca ocorrera, porém, é que não havia nenhum sobre si. E rapidamente surgiu a pessoa que o escolheu, emprestando-lhe especial dignidade. Foi uma jovem de quase 40 anos, vestindo terninho muito alinhado ao seu corpo - ainda atraente mesmo para jovens recém saídos da puberdade -, com postura decidida, como a de quem está acostumada a liderar. E foi expressando essa personalidade que levou aquele sabonete. Sua mão seguia uma linha perfeitamente reta na direção do sabonete e, sem haver qualquer distúrbio, alcançou-o com pulso firme e o colocou junto dos demais itens de higiene que constavam da cesta. Lá, havia desodorante, óleo perfumado, creme hidratante e até um perfume. Nesse universo, o sabonete parecia deslocado e sem valor. Se tivesse sido pego por uma das tantas pessoas comuns que por ele passaram, certamente estaria agora em lugar mais condizente com sua natureza. Haveria ao menos o potencial de apresentar algum destaque.


Foi apenas uma curta caminhada da loja até o apartamento da jovem. Este era bastante amplo e organizado, mas não era um ambiente acolhedor. A jovem morava só, e passava quase todo o tempo fora de casa. Se o sabonete tivesse sido pego por um qualquer, decerto teria toda uma família para servir. Mas essa era realidade muito diversa. Apenas a jovem o usava, sempre tarde da noite e do exato mesmo modo. Como se não bastasse a mesmice, o papel desempenhado pelo sabonete era praticamente irrelevante no procedimento de higiene realizado pela jovem. Ao contrário do sabonete, utilizado de qualquer jeito e com bastante pressa, os óleos e cremes possuíam forma prescrita para serem aplicados e alguns minutos eram gastos com cada um deles. O perfume fornecia o “gran finale” ao ritual. Monotonia e insignificância, portanto, marcaram a existência do sabonete por todo o tempo em que ia passando ralo abaixo, até que foi descartado na lixeira do banheiro junto com dejetos dos mais repugnantes. Não há dúvida de que haveria muito mais valor no sabonete caso tivesse sido pego por um vulgar.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Libra Rasa


O homem é essencialmente egoísta, característica cuja intensidade se manifesta de forma inversamente proporcional à dependência de outros para satisfazer as próprias vontades.

Já não me é claro quando ou como foi a última vez que vi imagem como esta. Aliás, entre as tantas coisas que se tornaram escassas, a clareza se destaca em quase todas as suas conotações - se não em todas. A luminosidade é um luxo que só pode ser usufruído em momentos muito raros. Surge apenas quando conseguimos apanhar algo para minorar a fome e, estando ela abrandada, restam as últimas centelhas do fogo construído para tornar minimamente palatável a carne dos animais que encontramos nesse buraco. A imagem que essa pouca luz revela é bastante curiosa, talvez por ser evento raro, como a sensação de saciedade que a acompanha. Vejo as figuras do meu irmão, dela, e do estranho. Cada um, como eu, encontra-se acocorado em um dos cantos dessa caverna. É como se buscássemos nos apropriar de uma das poucas coisas que temos em abundância: espaço. O pensamento está confuso em decorrência do desconforto extremo. Nossos traços fisionômicos acham-se transfigurados pela sujeira e pelo jogo de sombras produzido pelas pequenas chamas, que rapidamente vão se esvaindo. Nessas circunstâncias, parece natural que o espaço onde acostamos nossos corpos seja a única coisa capaz de dar alguma impressão de que, aqui, se pode firmar a individualidade. E quão avidamente a busco...

Não sei até que ponto a memória depende das imagens. Talvez ela seja avivada pela ilusão de que o sofrimento parte quando o estômago ganha algo para digerir depois de tanto tempo sem poder realizar sua atividade. Em outra ocasião, poderia gastar muito do meu tempo com divagações dessa natureza. Mas a lucidez tornou-se rara. Aparentemente minha mente escolheu se fixar nas lembranças envolvendo essas três pessoas que comigo dividem esse espaço, que muitas vezes reconforta ser pensado como o vindouro leito de morte. É estranho reparar que não domino os pensamentos, sempre tão difusos. Como há pouco lembrei, a clareza tornou-se uma estranha. Recordo de estarmos os quatro andando em uma floresta agradável, logo nas primeiras horas da manhã, após breve sereno. Essa soma de fatores fazia crer numa identidade pessoal com aquele ambiente. No entanto, a mata rapidamente foi se fechando, até virar esse breu. Não estou tão louco para deixar de perceber que isso não faz sentido. O caso é que não paira em minha mente qualquer explicação razoável sobre como foi a transição entre lugares tão distintos. Decerto algo muito traumático ocorreu, mas as condições não são as melhores para buscar coerência entre os pensamentos. Ainda, o que soa menos aceitável é eu estar com os três, pessoas pelas quais não nutro muito afeto, compartilhando um momento supostamente agradável.

Mas lembro que nem sempre foi assim. Dos três, ela era quem um dia me fora mais importante afetivamente. Ela surgiu ainda antes de nos acharmos adultos, em dia ordinário em que meu irmão e eu cuidávamos da mercearia de nossa família. Eu fingia não prestar atenção enquanto ela andava pelas prateleiras escolhendo os produtos. Meu irmão nem precisava fingir. Sequer a notara. Quando veio ao meu balcão para efetuar a compra, olhou fixamente em meus olhos. A sensação era sensivelmente desconfortável, especialmente porque eu não conseguia identificar um significado preciso para aquela fixação. Era evidente que se tratava de admiração, mas pelo que? Minha aparência seria uma justificativa, pois costumava causar alguma comoção no sexo feminino. Ocorre que, no caso dela, havia algo diferente. Como a atração que eu exercia me era algo bastante familiar, considerei não se tratar disso. Estava certo?

Em pouco tempo, passamos a frequentar outros ambientes juntos, eu, ela e meu irmão. Os encontros só não eram mais habituais por impedimentos postos por sua família. Ela deixara um noivo na cidade de onde viera. A toda evidência se percebia que esse relacionamento era particularmente caro à sua família. Ela pouco falava a respeito, mas era certo que seus pais não viam nossos encontros com bons olhos. Era como se representassem ameaça a seu noivado. E não parecia mesmo ser uma preocupação infundada. O espírito por trás daquele olhar enigmático persistia. Cada encontro era substancialmente entre eu e ela. Meu irmão era mero coadjuvante, e nem parecia se importar com isso.

Fomos os três para a mesma faculdade. Passamos a compartilhar muito mais tempo juntos. Os pais dela já não pareciam capazes de exercer o mesmo controle. Meu gosto e paixão pelas disciplinas de humanidades pareciam aumentar o charme que eu exercia sobre ela. Quanto ao meu irmão, dividido entre matérias técnicas e financeiras, foi progressivamente se tornando ainda mais alheio. Cada vez mais os encontros eram meus e dela. Isso até o meu irmão ganhar aquele prêmio. Nunca entendi bem o que ele desenvolvera. Tratava-se de algo ligado a internet e direitos autorais. A idéia de pegar um pensamento e atrelá-lo a seu idealizador, como se fosse uma coisa que lhe pertencesse, nunca me pareceu natural. Talvez por isso nunca busquei entender. O que realmente me preocupava era que aquele olhar dela, que eu já julgava parte do meu patrimônio, foi progressivamente se direcionando a meu irmão.

Ainda antes de a faculdade acabar, diversos contratos surgiram para meu irmão. De pronto, ele abandonou nossa mercearia para se dedicar exclusivamente a sua nova atividade. As mudanças pareciam instantâneas. Ela rompeu seu noivado e me largou por completo. Nunca mais me examinou com olhar penetrante, dedicando esse privilégio exclusivamente a meu irmão. Era estranho ser o coadjuvante. Eu tentava chamar sua atenção com as reflexões provenientes de meus estudos. Não surtia efeito. Quando os dois anunciaram seu noivado, entrei em desespero. O dia de seu casamento foi o mais sofrido de minha vida até então.

A miséria que tomou conta de mim era imensurável. Passei uma eternidade buscando entender toda essa história. Foi de repente, no entanto, que tudo fez sentido. Aquele olhar, que outrora me foi tão caro, nunca mirou minha alma. Era apenas para o entretenimento dela, focando no que mais superficial havia em mim. Minha aparência física sempre atraiu a atenção das mulheres, mas sempre me incomodou a idéia de meu valor resolver-se nisso. Porém, era só o que ela buscava. Mesmo quando o que chamava a atenção eram meus discursos sobre os grandes mestres, era a aparência que importava. Tratava-se de um estilo que se manifestava em comportamentos visualmente apreendidos e que agregava valor apenas à minha aparência.

Essa constatação afligia-me sobremaneira, mas era muito explicativa. O que ela sempre buscou em um homem foi estabilidade financeira. Sempre me pareceu que eu era destinado a gerenciar nossa modesta mercearia, e que todos assim me viam. Eu nunca poderia lhe proporcionar o que ansiava. Doía perceber que toda estima que dediquei a ela foi em vão. Ela era pessoa totalmente submissa a seus desejos materiais. Sua personalidade, de tão superficial, gerava-me amargura. Mas o que realmente me atormentava era pensar que eu era igualmente sem conteúdo, um mero vaso ornamental. Seria fácil afastar essa dor atribuindo a ela e sua frivolidade toda a responsabilidade por eu ser assim concebido. No entanto, a mesma luva parecia entrar na mão de uma infinidade de pessoas. As experiências em geral serviam como atestado de minha futilidade. Em breve eu envelheceria e perderia a única coisa que me dava valor. Foram inúmeras as vezes que quis que ela morresse, sobretudo pelas minhas mãos. Ora, ela era a causa do sentimento que mais me dilacerava: o de que, em essência, eu não era nada.

O curioso é que meu irmão, por quem de certa forma fui trocado, sempre foi alguma espécie de nada. Era extremamente metódico e reservado. Podia facilmente ser tido por autista ou um autômato de natureza pouco definida. Algo como um relógio de mola ou uma locomotiva de brinquedo. Estávamos sempre juntos, quer na mercearia, na escola ou na rua. Não nos acompanhávamos apenas nos não raro momentos em que, em casa, detinha-se com seus livros entediantes. Em verdade, eu nunca soube o que abordavam. Nem mesmo ele falava daqueles textos. A paixão que demonstrava pelos livros era a mesma de todo o resto. Meu irmão tinha natureza tão apática que sequer era possível averiguar se algo lhe agradava ou perturbava. E assim foi sempre. Lembro-me de uma vez em que, ainda muito criança, questionei nosso pároco sobre a possibilidade de ele não ter alma. Aliás, isso ocorreu diversas vezes. Cessou apenas quando fui duramente repreendido e obrigado a aceitar dogmaticamente que todo homem possui alma.

Eu bem percebia que isso me beneficiava. No mínimo pela boa aparência e pelo jeito loquaz, quando comparado com meu irmão, eu deveria parecer transbordar vivacidade. Talvez aparentasse até ser um líder nato. Em tudo, o coitado tinha natureza submissa. Qualquer que fosse o ambiente em que se inseria, buscava alguém para lhe dizer o que fazer. Parecia mesmo incapaz de ter pensamentos próprios. Isso certamente contribuiu para aumentar o valor que os outros viam em mim. Fazia tudo o que eu lhe pedia como se fosse uma ordem. E mais, tudo o que meu irmão dizia, em suas raras manifestações públicas, era algo que eu já havia dito anteriormente e com muito mais veemência. Ao fim, era como se fosse um apêndice meu. Pensando agora, minha importância fica, em verdade, absurdamente diminuta quando se tem em conta que fui trocado por ele.

Seus sucessos, tanto o acadêmico quanto o profissional, sempre me pareceram obra do acaso. Sua inaptidão para ter pensamentos autônomos é de todo incompatível com o fato de se sustentar a conta de direitos autorais. Ora, esses assentam na noção de obra, que tem a originalidade como um de seus pressupostos. A mim só faz sentido que por algum processo mecânico, como o do burocrata com seus carimbos, tenha juntado as informações de seus livros sem graça. Os resultados a que chegou só podiam não ter sido desenvolvidos antes pela complexidade do algoritmo que a eles conduziu. Tal hipótese é bastante compatível com sua personalidade autista. Mas, nesse aspecto, minha opinião é de todo irrelevante. Seu sucesso era notório. Os outros, ao invés de apenas demonstrar surpresa, rapidamente descobriram formas de dele se aproveitar.

Era fato que meu irmão era a mesma criatura débil e apática de sempre. Perceber isso ao mesmo tempo que ver seu reconhecimento social superior ao meu era contradição sufocante. Mais que isso, atordoava ver que pela primeira vez eu não conseguia tirar proveito pessoal de sua fraqueza, enquanto todos os demais pareciam fazê-lo com singela facilidade. Não eram escrúpulos ou qualquer outra causa nobre que me impediam. Apenas eu e meu irmão não aproveitávamos seu sucesso. Como isso lhe fora sempre natural, a impressão que me dava era a de que eu era pior que todos, sobretudo que ele. O idiota ao menos ampliou a gama de benefícios que gerava a outros. Por diversas vezes cheguei a querer matá-lo. Assim não haveria como se sobressair a mim. Acho que a imaginação da dor que me causaria um insucesso era a única coisa que me impedia. Talvez não. Acho que, no fundo, eu ainda tinha a esperança de poder tirar proveito da situação.

Agora, se havia alguém que o fazia com magistral habilidade, esse era o estranho. Assim como com meu irmão, eu nunca pude saber seu posicionamento sobre qualquer assunto. Entretanto, o motivo era totalmente diverso, embora ainda hoje eu não o identifique ao certo. Também como com meu irmão, eram raras suas manifestações públicas. Porém, quando ocorriam, ao contrário daquele, era certo que expressava a própria personalidade. Essa, embora muito discreta, era enérgica de maneira transbordante. Tudo nele sempre foi muito misterioso, a começar por seu surgimento, alguns meses depois de meu irmão ter ganhado seu prêmio. Apareceu a pretexto de representar uma grande figura do ramo em que meu irmão atuava, apenas para cuidar de alguns poucos contratos. Em pouco tempo, tratava de toda a parte negocial do empreendimento do meu irmão, que não pareceu ter achado isso ruim. O estranho era figura instigante. Sua mera presença era agradável, ainda que não se pudesse identificar o porquê. O espírito submisso do meu irmão encontrou no estranho alguém em quem apoiar sua nova vida. Isso já não podia ser feito sobre mim, provavelmente por eu ser completo leigo sobre tudo o que envolvia seus negócios.

Em pouco tempo, porém, o estranho foi tomando conta de outros aspectos da vida de meu irmão. No começo, isso não despertou em mim qualquer reação particular. Eu estava muito ocupado tentando buscar algo que me atribuísse valor. A dor que me causava ver todos exceto eu tirando proveito de meu irmão era grande. Não tanto, no entanto, quanto a provocada pela sensação de falta de valor próprio. Houve um jantar em família, porém, em que percebi que ela estava claramente dirigindo aquele olhar, meu velho conhecido, ao estranho. Foi então que percebi que ele estava tomando o lugar que eu ocupava até meu irmão obter sucesso. Em pouco tempo, o estranho atuava como verdadeiro chefe familiar. Eu continuava gerenciando a mercearia, mas ela trazia proveitos econômicos muito modestos. Por isso, o grupo não poderia reconhecer em mim grande autoridade. O estranho, ao contrário, visivelmente maximizava o valor das atividades de meu irmão. Por diversas vezes busquei retirar a autoridade conquistada pelo estranho. Minha estratégia era imputar a ele toda sorte de comportamentos moralmente reprováveis que pude. Eu o fazia mesmo quando não se tratasse de condutas suas. Tudo em vão. Sua geração de bons resultados parecia justificar qualquer defeito. Ainda, eu não conseguia sequer vislumbrar sua essência, sendo inimigo muito superior a mim. Ao fim, só me restava um jeito de sobrepor-me a ele e buscar retomar meu posto: matando-o.

Agora tudo faz mais sentido. Nos últimos anos, essas três pessoas atuaram de maneira bastante eficaz, ainda que não tenham percebido, para me reduzir a nada. Isso me dilacerava e trazê-los para esse covil era a solução de meus problemas. Ali, eu poderia matá-los e ninguém os encontraria. Seria a ocasião ideal para eu poder recuperar um pouco de dignidade. Mas ainda não consigo entender como farei isso. Como viemos parar aqui e como daqui posso sair? O desconhecimento dessas questões tão básicas angustia meu espírito. Será que se trata do contrário? Impossível. Eu já não tenho qualquer relevância social. Não há porque algum deles me querer morto. Já não sou nada. Também não poderia ser o caso de estarmos apenas nos divertindo. Eu não podia fazê-lo com essas pessoas, cuja mera existência me é insuportável. Certamente eu planejei nossa vinda para cá de modo a aparentar mero acidente. O mais provável é que um realmente aconteceu. Agora basta eu me concentrar para trazer à memória os meios para consumar meu plano. Assim como entendi o que estava acontecendo, a nova solução surgirá. É só uma questão de tempo.
 

***
Com essa ideia em mente, sentindo-se aliviado pela esperança de voltar a ser alguém, adormeceu tranqüilamente. As horas se passaram, tornando evidente que a refeição que fizera há pouco apenas criou uma ilusão de saciedade. Seu corpo precisava de mais, e a mente foi paulatinamente definhando. A impressão de que o tempo esclareceria como sair dali e concretizar suas vis ambições foi se mostrando cada vez mais falsa. Mas ele não era capaz de percebê-lo. O processo era o de um alheamento que o assemelhava cada vez mais a um animal. Reflexões sobre valor pessoal, seja como auto-estima, seja como status social, já não pareciam cabíveis. Em verdade, não era a primeira vez que teve aquela série de pensamentos. Toda vez que conseguia alguma espécie de conforto material, surgiam essas cogitações. Acontece que tais confortos estavam cada vez mais raros. Assim, esses episódios eram cada vez mais fugazes e as idéias progressivamente menos concatenadas. Também é certo que não era ele o único a tecer considerações dessa natureza. Os outros três realizavam operações semelhantes, cada um ao modo próprio de sua personalidade. No momento de satisfação das necessidades mais básicas, substituíam-nas por outras. Essas, embora mais sutis, resultavam em tamanha negação de si mesmos que talvez fossem mais intensas que as substituídas. A verdade é que a vida toda foi assim. Ainda que externamente não fosse tão perceptível, havia somente variação de grau. A situação de extrema penúria apenas agravou o quadro.

O curioso é que não era particularmente difícil conseguir o necessário para sobreviver naquele lugar. Ele era um esconderijo feito por escravos mestiços foragidos em tempos bastante remotos. Fora estrategicamente idealizado para prover um pequeno grupo com água, comida e calor por longos períodos. Diversas trilhas de animais silvestres passavam por esse buraco. Tornou-se elemento essencial daquele ecossistema, com o qual se integrava perfeitamente. O conhecimento para a formação dessa simbiose não era técnica conhecida de descendentes de colonos europeus. Os quatro que lá vinham habitando, representantes menores da pequena elite local, sequer sabiam como usufruir as vantagens daquele ambiente. Ironicamente, era a separação entre eles e os nativos, de que tão pomposamente se orgulhavam, que os condenava à sucumbência. De toda forma, o que viviam era verdadeiro pesadelo.

Passando a imensa maioria do tempo na completa escuridão, era curioso o modo como se fazia o preenchimento do conteúdo de suas consciências. Em verdade, subjacente a tudo o que experimentavam, estava a única constante que se encontra em qualquer situação – e que, abstratamente, pode ser caracterizada como um imenso vazio urgindo por preenchimento. Na situação em que se encontravam, no entanto, os próprios elementos básicos a partir dos quais a experiência era construída já são usualmente caracterizados como negativos. Diversas sensações eram velhas conhecidas e independiam da visão: frio, fome e medo, eram apenas algumas. Mas a mente não se contentava com isso. Buscava associar imagens a elas. Para tanto, não conseguia separar memórias de aspirações O resultado era figuras surreais e desesperadoras. No mais das vezes, eram as criaturas que lhes serviam de alimentos que vinham cobrar sua contrapartida, retirando partes de seus corpos. O que restava era tornado inerte por espessas brumas azuis que lentamente envolviam seus corpos. As lareiras de suas antigas residências e os grandes banquetes servidos nas festas eram vigiados por juízes que lhes lançavam olhares de repreensão como se deles não fossem merecedores. Na prática, estavam cada vez mais ineptos. O efeito era o de estarem sendo lentamente devorados.

Eram patéticas suas habilidades para conseguir o que, nos eventos sociais que frequentavam, chamavam de “mínimo existencial”. A expressão era parte de discursos de justificação ética de suas próprias práticas usurpadoras daqueles a quem tal mínimo deveria ser conferido. Não estavam em condição, no entanto, de perceber que disso se tratava. Estavam em estado animalesco. Não era razoável exigir deles qualquer reflexão minimamente elaborada. Mesmo os conflitos existentes entre si, objeto de seus pensamentos nos raros momentos de saciedade, já não apresentavam grande relevância. Todos os rancores foram progressivamente sendo postos de lado para formar um vínculo cooperativo que até então desconheciam. Nada mais natural. Por menor que fosse o animal abatido, nenhum dos quatro conseguia exaurir sozinho a carne que dele se retirava. O sucesso individual gerava, por contraditório que seja com o quadro de escassez, um excedente. Esse, no entanto, não podia ser apropriado pelo vencedor, pois as condições precárias em que se encontravam não permitiam o armazenamento útil. Servia, então, apenas para saciar as necessidades dos demais. O êxito pessoal era sempre imprevisível. Fazia-se impossível que qualquer deles pudesse se assegurar da capacidade de auto-suficiência. Assim, progressivamente perceberam que em conjunto formavam uma unidade produtiva muito mais eficiente. Mas não de maneira racional. Foi em seus inconscientes que se ia consolidando a privação de toda individualidade e a formação de uma unidade grupal. Os momentos de saciedade já não ensejavam pensamentos de adversidade de um para com o outro. Essa solidariedade foi crescendo em assustadora progressão, tornando-os cada vez mais eficazes para promover sua subsistência. Assim foi até que o último deles sucumbiu naquele buraco. Sim, a cooperação foi útil, mas chegou tarde demais.