sexta-feira, 11 de junho de 2010

Mirífico, Miragem


Desconhecer não evita o sofimento. Antes, causa-o pela via da frustração.

A primeira coisa que fez quando chegou em casa foi largar na mesa a pasta com os documentos do trabalho. No entanto, o fardo continuava em suas costas. Supostamente, deveria estar descontraído, pois vinha do bar, em que conversara com amigos de longa data. Em sua cabeça, isso necessariamente lhe daria algum entretenimento. Se pensasse um pouco, no entanto, entenderia porque não é assim. A rotineira reunião começava com uns trinta minutos de atualizações. Tais consistiam apenas em comentar quem está comendo quem e quem está ganhando mais do que quem - e a sensação era sempre a de que tem alguém melhor em cada um dos quesitos. Porém, nunca cogitou que isso desgastasse, uma vez que estava entre amigos, o que é obviamente divertido. Depois vinha o futebol. Aqui os ânimos se exaltavam de verdade. No entanto, não era propriamente uma empolgação. Mais do que comentar as glórias do time pelo qual torce, os maiores esforços eram postos em aporrinhar os outros como os defeitos dos seus times. Durante, até era agradável. Ficava sempre um grupo contra um, dando sensação de coletividade. No entanto, todos eram zoados ao final. O sentimento mais forte era o de ser derrotado por um grupo de amigos. Ainda assim, eram amigos, não havendo motivo para questionar a qualidade da discussão. O resto da noite no bar era gasta com memórias de desventuras. No mais das vezes, situações vexatórias, extremamente desagradáveis quando ocorreram. O dissabor envolvido na ocasião acabava trazendo a amargura de então. Mas os amigos estavam lá para o consolar. Será? Por que permanecia angustiado, então? Nunca ousou indagar. Assim era toda terça-feira, único dia em que não passava todo o tempo fora do trabalho assistindo televisão.

Essa sim era sua companheira. Apenas o noticiário falava de coisas com que não concordava - mas com o próprio noticiário, havia acordo. O que faltava era sentir na pele parte daquela excitação vivida pelas personagens de novelas, filmes e séries. Ele não se dava conta dessa falta, mas ela se fazia presente. Quer dizer, ele achava que estava bem, mas em seu espírito havia um voraz impulso para algo mais. Em um momento em que esse se mostrou um pouco mais evidente, assistiu ao comercial do Mirífico. Na primeira cena, era apenas mais um carro. Mas logo entrou a música, sofisticada, daquelas que dão a impressão de que são ouvidas pelo tipo de gente que se dá bem com todo mundo - o mesmo tipo do qual nunca se vê um exemplo. O carro parou e nele entraram um homem e duas mulheres. Todos, assim como o motorista, muito bem apessoados e com trajes e bolsas para jogar tênis. O carro prosseguiu saindo da cidade, por paisagens maravilhosas, somente inferiores à do clube em que chegaram os tenistas amadores - por certo, notórios amantes. Na próxima cena, ao final da tarde, novamente entraram no carro o motorista, um homem e duas mulheres. Não foram os mesmos, mas tipos menos esportivos. Não por isso menos carismáticos. Tratava-se dos típicos cosmopolitas que ouvem a música que tocava ao fundo. A impressão foi a de que tinham terminado a tarde jogando algo como bocha ou bridge. A paisagem de volta para a cidade era ainda mais bela ao pôr-do-sol. Novamente foi mostrado o interior do carro, agora à noite. Dessa vez, entraram apenas o motorista e uma estonteante mulher. As roupas, sensuais, mas nada vulgares. Por fim, os dois entraram sem pegar a fila de um animado clube noturno, em que cumprimentaram diversas pessoas antes de pegar seus drinques.

Vários minutos se passaram sem que ele prestasse atenção no que a televisão mostrava. Em sua cabeça, fantasiava que desfrutava a companhia da mulher da propaganda depois da diversão na boate. Passado o efeito, deu-se conta de que o Mirífico era justamente o que faltava em sua vida. Não foram necessárias profundas reflexões: em um só dia viveria mais do que vivia em um ano, com companhias e atividades mais diversas e melhores. A empolgação cresceu ainda mais. Foi direto para a internet pesquisar sobre o carro. Torceu o nariz quando viu que seu orçamento não comportava tal luxo. Mas agora já não era uma situação de escolha. Julgava já ter pensado em tudo, e o que importa não é pensar, mas fazer. Estava determinado a ter o carro, como se fosse uma força do destino - embora em sua cabeça não houvesse qualquer opinião sobre pré-determinação ou livre arbítrio (simples conversa mole sem função prática, pensava). O que não lhe ocorria era um meio eficaz de alcançar o novo objetivo. O ultimato foi a próxima reunião no bar. Ele se sentiu muito superior àquilo. Os dias que se seguiram foram de busca insuportável. A dor foi tamanha que se viu aliviado ao cogitar algo que em outras circunstâncias jamais seria uma alternativa. Iria trabalhar mais.

Já tinha a estratégia formulada. Havia um programa na sua companhia que oferecia um significativo bônus para o alcance de metas predeterminadas. Pelos seus cálculos, trabalhando por aproximadamente 14 horas diárias, em três meses poderia comprar a desejada máquina. Até então, sua situação no trabalho fora confortável por incontáveis meses. Ficar sentado ocupando espaço na sala durante 10 horas por dia era tudo o que precisava fazer. Não tinha do que reclamar. E como a maior parte de seu tempo era gasta nessa "atividade", achava natural pensar que a satisfação com o trabalho lhe deixava com a vida ganha. Mas agora sentia opressoramente que não era assim. Ironicamente, havia uma cruel correlação. Antes, julgava que a boa vida de trabalhador consistia justamente em poder não trabalhar. Agora, a vida realmente boa dependia de ter o Mirífico e, para tanto, precisava pegar duro no batente, pois era um obreiro em essência. Conclusão: ora a boa vida de assalariado tem repulsa ao trabalho, ora depende de trabalho árduo. Toda essa inconsistência poderia ser resolvida com alguma reflexão, mas julgava ser essa de todo dispensável. Decerto não levaria ao Mirífico. Para que, então, gastar energia com isso? Nesse aspecto, era resoluto: o importante é fazer, e não pensar. Até então, nada lhe atormentava mais do que ter que se esforçar para enriquecer outrem. Agora, porém, esse tormento é um meio para um fim que lhe é capital. Como um verdadeiro prostituto, sustentou convicto que os fins justificam os meios (apenas em atitude, claro, pois nunca pensou segundo categorias intangíveis como "meio" e "fim").

O plano estava traçado. A execução foi sofrível. Tinha imagens do Mirífico sempre à mão. Pôster na parede, calendário promocional, foto na carteira, proteção de tela e papel de parede do computador: para todos os lados podia aliviar sua tensão mirando a intenção. Aliás, essa era outra estranha correlação da qual ele não se dava conta. Afinal, uma intenção legítima não deveria levar a um tipo de tensão que, ao invés de dever ser aliviada, deveria inspirar coragem? Sequer chegou a formular tal indagação, e precisou muito daqueles alívios. No mais, por si só, o tempo que passava trabalhando já dificultava seu encontro com outras pessoas. O restante da vida social foi desgastado por seu mau humor decorrente do estresse. Mas ele não percebeu o afastamento dos amigos. E não importava: ao fim do semestre, conseguiu economizar o necessário. A compra pareceu-lhe a purgação de todo o sacrifício. Mas o que de fato conquistou foi um objeto que passava mais tempo na garagem de casa e no estacionamento do trabalho. O pior é que nesse último depósito estava longe de ser o único - e a vida não pode brilhar para tanta gente. Ao cabo, a única excitação de que efetivamente podia desfrutar era passar mais rapidamente pelas ruas sem graça de sua cidade. Isso, completamente só. A angústia cresceu e passou a fazer essa estripulia com maiores frequência e intensidade. Aqui não havia compensação. Completamente desesperado, em velocidade que jamais atingira, acertou a parede de concreto de um viaduto.

Esse não foi o fim de sua vida, mas apenas o de uma certa ligação de neurônios desencadeada pela propaganda que sequer chegou a firmar-se, restando longe de sua consciênscia. Sim, sua mente era capaz de perceber o exagero da propaganda e o quão pouco provável era de aquilo se concretizar. Foram os anos de quase bestilização que se seguiram ao período de escola que o ensinaram a ignorar mesmo essa pouco expressiva capacidade intelectual. Ao fim, foi a preguiça que o impediu de mudar a vida, sequente inerte em sua marcha de insatisfação. Ainda, de tudo o que passou despercebido, o mais importante foi um curioso indício de sua tosca condição: a pessoa que é capaz de lhe servir de modelo protagoniza história que mal tem um enredo.