sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Chronos e Afrodite


A porta da casa se abria. E dessa vez era justamente para ele. Quão incontáveis foram as horas que gastara diante dessa mesma porta apenas para poder vê-la saindo apressada? E quantos dias tiveram frações dessas horas... ou melhor, quantos não tiveram? Por mais que fosse muito tempo, mesmo somados, todos os segundos em que a vira não chegariam ao que estava para acontecer. Sim, pois dessa vez seria ela abrindo a porta para apresentá-lo a sua avó, com quem mora só. Um amigo de amigo havia conseguido o bico de cuidador de idosos, para o tempo em que ela tinha que trabalhar e a avó ficava desamparada. Certamente os dois passariam mais tempo juntos naquele primeiro dia, pois as rotinas deveriam ser explicadas, ainda que basicamente.

O tempo. Coisa curiosa. Como podem todos os relógios marcar o mesmo quando as situações parecem tão distintas? O abrir da porta foi sucedido por uma situação em que o relógio, o mesmo velho companheiro, sequer foi consultado, e a situação em si, de todas, distinta. Não pôde ver seus olhos. Mal a face foi exposta e os cabelos deram as caras em espiral que seguia seu corpo tomando o rumo do outro lado do hall. Poderia dizer que exalava o cheiro do mais belo jardim, se um dia houvesse sido afeto a flores. Não faz mal. Jurava convicto que essa era a fragrância. O ar reverberou um curto “entre, venha cá!” que perdurou insistentemente em sua cabeça. O timbre era aveludado, mas o ritmo cadenciado. Exprimia o doce som decidido de quem dá ordens que são naturalmente seguidas. Deixou o dinheiro para pequenas compras e as mãos se tocaram. A textura não era a típica feminina. Havia pequenos calos e vários sulcos. Não combinava com as leves dimensões.

Quando se deu conta, estava de frente à velha senhora que o olhava apreensiva. Foi quando percebeu que estava tão envolto na forma que não capturou o conteúdo daquilo que lhe pareceu ordens que são naturalmente seguidas. A avó não podia falar. O AVC de que fora vítima também não lhe permitia muitos movimentos. No entanto, havia algo muito comunicativo em seus olhos. Rapidamente e sem pensar, foram criando uma forma de interação que, deixando as limitações à parte, permitia a satisfação das vontades da avó. Tudo era feito por meio de olhares e singelas elevações da sobrancelha. Se a senhora queria algo, olhava para a direção levantando a sobrancelha. Ele ia até o local do olhar até que, em tomando postura adversa à satisfação do desejo, novamente a sobrancelha era erguida. Assim, na tentativa e erro, as opções iam sendo descartadas até que restasse apenas a aspirada. A eficiência do método progrediu tão rapidamente que, por vezes, parecia algo telepático. Em pouco tempo ela chegou mesmo a formular pedidos de leitura de capítulos específicos dos livros que lhe eram caros. Era grande injeção de entusiasmo para ambos. Ao cabo, também a atividade de cuidador de idosos tornou-se amplamente prazerosa.

Ela entrou em casa agitada. Via-se que o trabalho não era grande fonte de prazer. De início, fez que não o notava em casa. Cumprimentou brevemente e se pôs a executar pequenas tarefas domésticas. Estranhamente, todas nos arredores dos outros dois, onde quer que estes estivessem. Percebeu a empatia entre eles e não fez sinal de que gostou. Comentou que suas recomendações não haviam sido seguidas. A velha deu de ombros. Ela insistiu no descumprimento e a velha baixou a cabeça. Temia perder a nova companhia. Apesar de surpreso, ele aproveitou para se orientar melhor sobre as rotinas a seguir. Os dias que se seguiram não foram muito diferentes desse primeiro, embora a sensação de novidade fosse se esvanecendo e sendo substituída por uma áspera atmosfera de ciúme. Nesse ponto, a companhia da avó era muito mais agradável do que a da neta.

Certo dia retornou à casa muito mais cedo. Suas mãos tremiam e ostentava ares de profunda ira. “Você não tem tratado bem a minha avó!” Primeiramente, a velha expressou enorme espanto, mas logo baixou o olhar. “Por que me diz disso?”. “Ela me falou”. Mas ela não fala... - pensou. Os dois ficaram se olhando. Essa era a primeira vez em que a mirava fixa e diretamente. O medo de perder o estimado emprego impediu que percebesse: já havia se afeiçoado muito à avó. Mas quando se deu conta, a neta beijava-o ardentemente. A surpresa foi acompanhada por um forte frio na barriga e grande vertigem. Para não cair, abraçou-a vigorosamente. Mais centrado, retribuiu o beijo de maneira apropriada. Logo percebeu que ela buscava orientar o aperto para pressionar seus seios. Ora um, ora outro, comprimia e relaxava. Ele notou que se erigia e, vexado, tentou disfarçar girando-se levemente. Ela impediu rápida e segura de si, com um entrelaçar de pernas e o encaixe da porção baixa da pélvis no corpo entumecido. O êxtase tomou conta de ambos. As roupas nunca houveram sido obstáculo tão complicado. Ainda assim, de repente, era entrave superado. O contato dos corpos era mágico. Tanto a pele do outro era ansiada avidamente quanto a própria pele era experimentada de forma diferente. Por dentro, parecia haver uma enxurrada. Os pontos corporais mais inusitados iam paulatinamente se transformando em vulcões erógenos. A intensidade era tamanha que os bruscos movimentos iniciais tiveram que dar lugar a suaves carícias. De súbito, foi formado o andrógino platônico. Não foi intencional e o momento sequer percebido. Talvez tenha sido naquele gemido mais forte. Será? Houve momentos de prazer tão intenso que chegavam a sufocar os gemidos. Certo é que a fusão dos corpos era plena, não importando o momento preciso em que se deu. Mesmo na superfície, seu entrelaçamento ao longo dos movimentos constantes tornava difícil identificar se as partes corporais eram de um ou de outro. Tudo parecia único. 

E, até ali, realmente era. Acontece que se seguiram vários outros eventos similares. Embora cada qual tivesse sua identidade, todos remetiam de alguma forma ao primeiro. Ao menos a paixão e o queimor pareciam iguais em intensidade. Ele passou a dormir na casa com as duas pessoas por quem nutriu maior afeto em toda a vida. Houve momentos de ciúme e necessidade de adaptação dos costumes envolvendo as três partes. Mas nada era tumultuado. O que faltava em uma das relações isoladas sobrava em outra, de modo que as situações fluíam com naturalidade para um equilíbrio, embora nunca estático. Sempre surgia um novo elemento a tornar a relação efusiva. Um deles, bastante desagradável. Alguns anos depois, a avó foi sendo acometida de uma enfermidade após outra. Foram tempos dinâmicos, mas tortuosos. Progressivamente foi ficando claro que a união estava muito próxima do fim. Mas foi mera ilusão. A velha partiu, mas não completamente. Seu corpo roto, como é natural para a idade, não mais se fazia presente. No entanto, a serenidade habitual de seu espírito permaneceu inspirando o casal, que mal via a hora para que a passagem do tempo trouxesse sabedoria a ensejar aquela saudosa comunicação telepática.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Mirífico, Miragem


Desconhecer não evita o sofimento. Antes, causa-o pela via da frustração.

A primeira coisa que fez quando chegou em casa foi largar na mesa a pasta com os documentos do trabalho. No entanto, o fardo continuava em suas costas. Supostamente, deveria estar descontraído, pois vinha do bar, em que conversara com amigos de longa data. Em sua cabeça, isso necessariamente lhe daria algum entretenimento. Se pensasse um pouco, no entanto, entenderia porque não é assim. A rotineira reunião começava com uns trinta minutos de atualizações. Tais consistiam apenas em comentar quem está comendo quem e quem está ganhando mais do que quem - e a sensação era sempre a de que tem alguém melhor em cada um dos quesitos. Porém, nunca cogitou que isso desgastasse, uma vez que estava entre amigos, o que é obviamente divertido. Depois vinha o futebol. Aqui os ânimos se exaltavam de verdade. No entanto, não era propriamente uma empolgação. Mais do que comentar as glórias do time pelo qual torce, os maiores esforços eram postos em aporrinhar os outros como os defeitos dos seus times. Durante, até era agradável. Ficava sempre um grupo contra um, dando sensação de coletividade. No entanto, todos eram zoados ao final. O sentimento mais forte era o de ser derrotado por um grupo de amigos. Ainda assim, eram amigos, não havendo motivo para questionar a qualidade da discussão. O resto da noite no bar era gasta com memórias de desventuras. No mais das vezes, situações vexatórias, extremamente desagradáveis quando ocorreram. O dissabor envolvido na ocasião acabava trazendo a amargura de então. Mas os amigos estavam lá para o consolar. Será? Por que permanecia angustiado, então? Nunca ousou indagar. Assim era toda terça-feira, único dia em que não passava todo o tempo fora do trabalho assistindo televisão.

Essa sim era sua companheira. Apenas o noticiário falava de coisas com que não concordava - mas com o próprio noticiário, havia acordo. O que faltava era sentir na pele parte daquela excitação vivida pelas personagens de novelas, filmes e séries. Ele não se dava conta dessa falta, mas ela se fazia presente. Quer dizer, ele achava que estava bem, mas em seu espírito havia um voraz impulso para algo mais. Em um momento em que esse se mostrou um pouco mais evidente, assistiu ao comercial do Mirífico. Na primeira cena, era apenas mais um carro. Mas logo entrou a música, sofisticada, daquelas que dão a impressão de que são ouvidas pelo tipo de gente que se dá bem com todo mundo - o mesmo tipo do qual nunca se vê um exemplo. O carro parou e nele entraram um homem e duas mulheres. Todos, assim como o motorista, muito bem apessoados e com trajes e bolsas para jogar tênis. O carro prosseguiu saindo da cidade, por paisagens maravilhosas, somente inferiores à do clube em que chegaram os tenistas amadores - por certo, notórios amantes. Na próxima cena, ao final da tarde, novamente entraram no carro o motorista, um homem e duas mulheres. Não foram os mesmos, mas tipos menos esportivos. Não por isso menos carismáticos. Tratava-se dos típicos cosmopolitas que ouvem a música que tocava ao fundo. A impressão foi a de que tinham terminado a tarde jogando algo como bocha ou bridge. A paisagem de volta para a cidade era ainda mais bela ao pôr-do-sol. Novamente foi mostrado o interior do carro, agora à noite. Dessa vez, entraram apenas o motorista e uma estonteante mulher. As roupas, sensuais, mas nada vulgares. Por fim, os dois entraram sem pegar a fila de um animado clube noturno, em que cumprimentaram diversas pessoas antes de pegar seus drinques.

Vários minutos se passaram sem que ele prestasse atenção no que a televisão mostrava. Em sua cabeça, fantasiava que desfrutava a companhia da mulher da propaganda depois da diversão na boate. Passado o efeito, deu-se conta de que o Mirífico era justamente o que faltava em sua vida. Não foram necessárias profundas reflexões: em um só dia viveria mais do que vivia em um ano, com companhias e atividades mais diversas e melhores. A empolgação cresceu ainda mais. Foi direto para a internet pesquisar sobre o carro. Torceu o nariz quando viu que seu orçamento não comportava tal luxo. Mas agora já não era uma situação de escolha. Julgava já ter pensado em tudo, e o que importa não é pensar, mas fazer. Estava determinado a ter o carro, como se fosse uma força do destino - embora em sua cabeça não houvesse qualquer opinião sobre pré-determinação ou livre arbítrio (simples conversa mole sem função prática, pensava). O que não lhe ocorria era um meio eficaz de alcançar o novo objetivo. O ultimato foi a próxima reunião no bar. Ele se sentiu muito superior àquilo. Os dias que se seguiram foram de busca insuportável. A dor foi tamanha que se viu aliviado ao cogitar algo que em outras circunstâncias jamais seria uma alternativa. Iria trabalhar mais.

Já tinha a estratégia formulada. Havia um programa na sua companhia que oferecia um significativo bônus para o alcance de metas predeterminadas. Pelos seus cálculos, trabalhando por aproximadamente 14 horas diárias, em três meses poderia comprar a desejada máquina. Até então, sua situação no trabalho fora confortável por incontáveis meses. Ficar sentado ocupando espaço na sala durante 10 horas por dia era tudo o que precisava fazer. Não tinha do que reclamar. E como a maior parte de seu tempo era gasta nessa "atividade", achava natural pensar que a satisfação com o trabalho lhe deixava com a vida ganha. Mas agora sentia opressoramente que não era assim. Ironicamente, havia uma cruel correlação. Antes, julgava que a boa vida de trabalhador consistia justamente em poder não trabalhar. Agora, a vida realmente boa dependia de ter o Mirífico e, para tanto, precisava pegar duro no batente, pois era um obreiro em essência. Conclusão: ora a boa vida de assalariado tem repulsa ao trabalho, ora depende de trabalho árduo. Toda essa inconsistência poderia ser resolvida com alguma reflexão, mas julgava ser essa de todo dispensável. Decerto não levaria ao Mirífico. Para que, então, gastar energia com isso? Nesse aspecto, era resoluto: o importante é fazer, e não pensar. Até então, nada lhe atormentava mais do que ter que se esforçar para enriquecer outrem. Agora, porém, esse tormento é um meio para um fim que lhe é capital. Como um verdadeiro prostituto, sustentou convicto que os fins justificam os meios (apenas em atitude, claro, pois nunca pensou segundo categorias intangíveis como "meio" e "fim").

O plano estava traçado. A execução foi sofrível. Tinha imagens do Mirífico sempre à mão. Pôster na parede, calendário promocional, foto na carteira, proteção de tela e papel de parede do computador: para todos os lados podia aliviar sua tensão mirando a intenção. Aliás, essa era outra estranha correlação da qual ele não se dava conta. Afinal, uma intenção legítima não deveria levar a um tipo de tensão que, ao invés de dever ser aliviada, deveria inspirar coragem? Sequer chegou a formular tal indagação, e precisou muito daqueles alívios. No mais, por si só, o tempo que passava trabalhando já dificultava seu encontro com outras pessoas. O restante da vida social foi desgastado por seu mau humor decorrente do estresse. Mas ele não percebeu o afastamento dos amigos. E não importava: ao fim do semestre, conseguiu economizar o necessário. A compra pareceu-lhe a purgação de todo o sacrifício. Mas o que de fato conquistou foi um objeto que passava mais tempo na garagem de casa e no estacionamento do trabalho. O pior é que nesse último depósito estava longe de ser o único - e a vida não pode brilhar para tanta gente. Ao cabo, a única excitação de que efetivamente podia desfrutar era passar mais rapidamente pelas ruas sem graça de sua cidade. Isso, completamente só. A angústia cresceu e passou a fazer essa estripulia com maiores frequência e intensidade. Aqui não havia compensação. Completamente desesperado, em velocidade que jamais atingira, acertou a parede de concreto de um viaduto.

Esse não foi o fim de sua vida, mas apenas o de uma certa ligação de neurônios desencadeada pela propaganda que sequer chegou a firmar-se, restando longe de sua consciênscia. Sim, sua mente era capaz de perceber o exagero da propaganda e o quão pouco provável era de aquilo se concretizar. Foram os anos de quase bestilização que se seguiram ao período de escola que o ensinaram a ignorar mesmo essa pouco expressiva capacidade intelectual. Ao fim, foi a preguiça que o impediu de mudar a vida, sequente inerte em sua marcha de insatisfação. Ainda, de tudo o que passou despercebido, o mais importante foi um curioso indício de sua tosca condição: a pessoa que é capaz de lhe servir de modelo protagoniza história que mal tem um enredo.

sábado, 1 de maio de 2010

Tom e Jerry


E uma pitada de humor...

Já ouviu falar do cara comum? Jerry é o próprio. Ocupa a mais baixa posição na “cadeia de trabalho”. Sendo um tipo de pau-para-toda-obra, sequer consegue descrever com precisão as características de sua atividade profissional. Sua chefe, Dra. Murphy, é o próprio demônio em saltos altos (os quais usa para compensar sua pequenez em todo o resto). Mas o que seria uma regra sem exceções? Como poderia haver uma pessoa ordinária sem suas peculiaridades? Jerry as tem: ama seu gato, Tom, sobre todas as coisas, um amor seguido de perto por seu vício por simples pão com manteiga.

Junto com a total inépcia para acordar cedo, essa tríade (Murphy, Tom e vício por pão com manteiga) colocou nosso herói do dia-a-dia em maus lençóis uma vez. A confusão começava com o habitual passeio noturno de Tom pela vizinhança. Sempre que chegava, suas patas eram só imundície. Em poucos minutos, a cozinha estava toda enlameada. E como sujeira gera mais sujeira exponencialmente, Jerry tinha que limpar as pegadas de Tom antes de sair para o trabalho. De outro modo, a cozinha seria um verdadeiro pesadelo ao fim do dia. No entanto, como o pobre rapaz já houvera acordado tarde, não tinha muito tempo para a arrumação. Desajeitado, sempre derrubava o pão com manteiga, cuidadosamente preparado antes de dormir, que invariavelmente caía com o lado da manteiga voltado para o chão. O resultado não podia ser outro: Jerry chegava atrasado no trabalho, sem satisfazer seu vício e tendo de aguentar um longo sermão da Dra. Murphy.

Essa bagunça era muito frequente. Um dia, a Dra. Murphy decidiu que era o bastante e deu ao subalterno três chances: o terceiro dia em que chegasse atrasado seria o de sua demissão. Assim, Jerry tinha mais ou menos três dias para arranjar uma solução para um problema com o qual convivia por pelo menos dois anos. Extremamente compenetrado com os fatores envolvidos, percebeu que ficou obrigado a fazer algo por decisão da Dra. Murphy. Era como se fosse uma lei de Murphy. Mmmmmm... veio o mugido da sabedoria: essa é a mesma lei que determina que o pão sempre caia com o lado da manteiga voltado para o chão! Na seqüência, lembrou-se de ter visto os levados moleques da vizinhança “brincando” com Tom. As espirituosas crianças atiravam o bichano para cima de todas as formas imagináveis, mas ele sempre caía em pé. Pronto! A solução para o problema de Jerry era agora uma simples questão de física.

Jerry passou a noite na companhia do amado Tom fazendo experimentos com pães de diferentes tamanhos e distintas quantidades de manteiga. O rito consistia em passar a manteiga sobre o pão, anotar as quantias envolvidas e amarrar o lanche nas costas de Tom. A seguir, suspendia o felino a meio metro do chão. As leis da natureza não mudam porque assim é nossa vontade. Após soltar o gato, a face do pão em que havia manteiga inexoravelmente puxava o “sistema” para baixo. No entanto, as patas de Tom imediatamente faziam o esforço contrário. Quando as devidas medidas foram atingidas, o pequeno físico conseguiu o equilíbrio desejado. Seu grande companheiro agora poderia flutuar girando em torno de seu próprio eixo. Assim podia realizar seus passeios noturnos sem sujar suas patas. No início da manhã, não havia nada para limpar. Bastava desamarrar o pão das costas do gato e comê-lo calmamente antes de ir para o trabalho. Jerry ficou tranquilo por duas ou três semanas, quando a Dra. Murphy encontrou outra coisa para perturbar seu subordinado. Mas ele já não se importa. Uma vez na vida conseguiu resolver um grande problema de forma simples e brilhante. Isso lhe serviu de inspiração para o resto da vida.




Acima: o pão com manteiga e Tom em um espaço cartesiano tridimensional; Abaixo: Tom girando em torno de seu próprio eixo em um espaço cartesiano tridimensional.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Passado Abaixo (ou Biografias de um Sabonete)


Na decisão, escolhe-se a alternativa que aparenta ser a mais apta à satisfação da vontade. Frustrada a expectativa, aumenta-se o valor das alternativas descartadas, que assolam o optante em relação a seu passado.


Mais uma vez era aberta a pesada porta metálica da loja. Era a primeira vez, no entanto, que da rua se podia ver aquele sabonete. Não que houvesse algo especial nele. Pelo contrário, aos seus lados e abaixo, estavam dúzias de outros idênticos. O que nunca ocorrera antes, porém, é não haver nenhum sobre si. Assim, o passar do dia foi ordinário para quase tudo e todos que por lá transitaram, mas não para esse sabonete. Pela primeira vez foi considerado uma opção de compra. Ora, sendo a venda a finalidade que o punha ali, tratava-se de profunda diferença. Mas o que é comum entre as coisas nem sempre lhes atribui a mesma rotina. Nessa loja, muito se podia dizer das distinções entre o cotidiano de cada um dos produtos que, ao fim, estava lá para o mesmo propósito: alienação. Veja o caso do perfume, por exemplo, logo ali tão perto. Do mesmo tipo, no máximo três caixas ficavam juntas. Por conta da variedade, o tempo gasto na escolha dos perfumes era sempre muito maior do que na dos sabonetes. Isso certamente lhes dava mais dignidade. Afinal de contas, são alternativas para uma escolha que tem basicamente a mesma contrapartida: entrega de dinheiro. Pois bem, se o substancial de tudo o que ali se encontra é ser objeto de uma decisão, nada mais natural do que entender como mais digno aquilo em que se deposita mais esforço para a escolha.


Ainda sobre a diferença entre os perfumes e os sabonetes, enquanto diversas pessoas - dos mais variados sexos, idades, e estilos - examinaram cada uma das caixas de perfume vizinhas, aquele sabonete, em particular, foi considerado apenas por duas pessoas. A primeira, uma jovem de quase 40 anos, vestindo terninho muito alinhado ao seu corpo - ainda atraente mesmo para jovens recém saídos da puberdade -, com postura decidida, como a de quem está acostumada a liderar. E foi exatamente essa personalidade que a impediu de levar aquele sabonete. Sua mão seguia uma linha perfeitamente reta na direção do sabonete. Um leve choque com um dos transeuntes, no entanto, impediu que se encontrassem. Como a jovem queria apenas um sabonete qualquer entre os tantos que lá havia, apanhou o que estava na outra ponta da nova linha, igualmente reta, assumida por sua mão. Certamente esse não teria sido o desfecho do encontro se se tratasse de um perfume.


Alguns bons instantes após, porém, um novo encontro ocorreu. Dessa vez, um efetivo. Nesse caso, não era tão fácil descrever o personagem. Não porque era dotado de personalidade muito singular, mas pelo oposto. De tão comum, era difícil identificar traços que o individualizavam. Era apenas um prosaico. Para apanhar o sabonete, sua mão não descreveu qualquer figura conhecida da geometria. Antes, caiu quase inerte sobre a pilha de sabonetes e se arrastou completamente desinteressada por diversos deles. O fechamento dos dedos para apanhar aquele específico sabonete foi tão casuístico que faria dos mais otimistas teóricos do comportamento humano tornar-se um cético sobre a possibilidade de encontrar leis que os antecipe. As demais características do prosaico eram igualmente desprovidas de ânimo. Era um vulgar desinteressante. Ao fim, no entanto, parece ter sido o casamento ideal para o sabonete, igualmente ordinário.


Os dois seguiram longo caminho dentro de um ônibus lotado. O sabonete estava na companhia de alguns outros poucos itens banais que satisfazem apenas necessidades corriqueiras de seus usuários, e que por isso mesmo nem são notados no cotidiano. Essa certamente não teria sido a situação do sabonete se fosse a jovem quem o tivesse pego, ou mesmo se fosse um perfume. No mínimo estaria na companhia de um. Por outro lado, se estivesse com objetos de maior nobreza, mais em xeque estaria seu próprio pedigree. Assim, talvez o sabonete tivesse mais valor para o prosaico do que para a jovem, mesmo desempenhando a mesma função. Nesse caso, o apreço provém de virtude que retira de si mesmo, e não do contexto em que se encontra. Muito conforto espiritual já foi encontrado no que se tornou máxima popular segundo a qual a companhia determina o caráter do acompanhado. Dizer com quem se anda, aqui, possui conotação ambígua. Se os acompanhantes não chegam a ter grande dignidade para transferir ao sabonete, ao menos são a causa de aquela que lhe é intrínseca ser enaltecida.


Chegaram ao seu destino. Era abrigo humilde, como se deveria imaginar. Na verdade, não passava de um barracão. Talvez fosse razoável esperar um pouco mais de distinção, mesmo tendo em conta que era o refúgio do prosaico. Essa expectativa era cabível mesmo desconsiderando qualquer comparação com a situação de a compradora ter sido a jovem, que provavelmente surpreenderia pelo requinte. O interior da edificação, no entanto, era aconchegante. Tratava-se mesmo de um lar. Viviam ali a esposa do prosaico e sua filha, bem como alguém ligado à família por vínculos tão oblíquos que é melhor chamá-lo apenas de aparentado. Era um núcleo familiar bastante pequeno, o que é incomum para esse ambiente sócio-econômico. Nesse ponto, a situação não seria diferente se tivesse sido levado pela jovem. Será mesmo que não? Na casa do prosaico, os habitantes não demonstravam grande ânimo com a vida. Na da jovem, com mais ou com menos pessoas, a situação decerto seria outra.


Após esse breve primeiro encontro, o sabonete foi acostado em um enorme armário do banheiro, único da residência, e por lá permaneceu abandonado por algum tempo. Era um banheiro simples, quase grosseiro. Talvez fosse mais apropriado para um sabão, o que diminuía o já baixo mérito então desfrutado pelo sabonete. Deixando isso de lado, o que estava reservado para ele? Pois, se o ambiente não era muito promissor, o contato com seus usuários poderia ser bastante gratificante. A esposa era extremamente dedicada ao trabalho doméstico para fazer daquela pobre residência um local mais agradável. Disso resultava grande sujeira em seu corpo, sendo a que mais necessitava do sabonete. Para ela, ele poderia representar a purificação que lhe daria o merecimento do usufruto do próprio labor. Na seqüência, a maior glória viria da limpeza do corpo da filha, comungando a purgação da sujeira tangível com a pureza natural da alma da inocente criança. A seguir, vinha o aparentado, a quem o sabonete poderia servir de meio para reforçar seu vínculo com a família. No momento do banho, todos, inclusive o aparentado, usariam o mesmo sabonete. Este seria um dos tão escassos elementos comuns entre eles. Por fim, havia o prosaico. De tão ordinário que era, serviria de descanso ao próprio sabonete: a par de todas as nobres funções que desempenharia, teria a chance de rotineiramente passar por uma experiência comum.


Após alguns dias passados dentro daquele armário, a esposa desempacotou o sabonete e o usou pela primeira vez. De fato, seu corpo estava imundo. O curioso é que, em algumas partes, formava-se espessa camada de sujeira, verdadeira casca. Parecia o começo ideal. Mas o banho logo mostrou a justificativa da sujidade. O sabonete mal fora usado. A esposa tinha verdadeira relação de simbiose com o lixo que se ia juntando na casa. O tormentoso àquela criatura era a limpeza. Mas ao sabonete ainda havia três boas oportunidades. A filha foi a próxima, e prometia ser o verdadeiro começo. Apesar da pouca idade, logo se viu que nada havia de inocente naquela menina. As brincadeiras que fazia durante o banho, nas quais envolvia o sabonete, eram próprias de adultos, e dos não muito comportados. Não havia pureza ali, mas a mais intensa malícia unindo corpo e alma. Faltava ao sabonete qualquer vocação para remover esse tipo de sujeira. O aparentado parecia promissor, mas, agora, exatamente por não pertencer propriamente àquele grupo de degenerados. Acontece que, justamente por isso, antes de usar o sabonete em seu corpo, deixava a água escorrer sobre ele até que boa parte de sua superfície fosse gasta. Para o aparentado, era como se fosse um novo sabonete, apenas seu. O motivo da repulsa era de todo compreensível, mas o desgaste sofrido pelo sabonete não parecia proporcional. Quanto ao prosaico, última esperança, pôde-se perceber em poucos segundos que ali nada havia de ordinário. O homem era obsessivo e metódico. O ritual era tão enervante que em nada podia representar descanso.


Foi nesse ritmo opressor que o sabonete ia passando ralo abaixo. Houve ainda uma ou outra situação que se afigurou, de início, como potencialmente satisfatória. Tais foram os casos das eventuais visitas que o usaram. Essas, no entanto, tratavam o sabonete com nojo, parecendo até que sabiam dos detalhes sórdidos do seu uso cotidiano. Também teve vezes em que foi usado na cozinha, mas apenas para limpar louças, panelas e talheres - finalidade muito aquém de sua própria vocação. Se tivesse sido pego pela jovem, certamente teria destino mais nobre. Se fosse um perfume... aí sim! Mas não foi nada disso, e terminou seus dias quase totalmente dissolvido e anexado artificialmente a outro sabonete, como uma muleta sua.


***


Mais uma vez era aberta a pesada porta metálica da loja. Era a primeira vez, no entanto, que da rua se podia ver aquele sabonete. Não que houvesse algo especial nele. Ao contrário, aos seus lados e abaixo, estavam dúzias de outros idênticos. O que nunca ocorrera, porém, é que não havia nenhum sobre si. E rapidamente surgiu a pessoa que o escolheu, emprestando-lhe especial dignidade. Foi uma jovem de quase 40 anos, vestindo terninho muito alinhado ao seu corpo - ainda atraente mesmo para jovens recém saídos da puberdade -, com postura decidida, como a de quem está acostumada a liderar. E foi expressando essa personalidade que levou aquele sabonete. Sua mão seguia uma linha perfeitamente reta na direção do sabonete e, sem haver qualquer distúrbio, alcançou-o com pulso firme e o colocou junto dos demais itens de higiene que constavam da cesta. Lá, havia desodorante, óleo perfumado, creme hidratante e até um perfume. Nesse universo, o sabonete parecia deslocado e sem valor. Se tivesse sido pego por uma das tantas pessoas comuns que por ele passaram, certamente estaria agora em lugar mais condizente com sua natureza. Haveria ao menos o potencial de apresentar algum destaque.


Foi apenas uma curta caminhada da loja até o apartamento da jovem. Este era bastante amplo e organizado, mas não era um ambiente acolhedor. A jovem morava só, e passava quase todo o tempo fora de casa. Se o sabonete tivesse sido pego por um qualquer, decerto teria toda uma família para servir. Mas essa era realidade muito diversa. Apenas a jovem o usava, sempre tarde da noite e do exato mesmo modo. Como se não bastasse a mesmice, o papel desempenhado pelo sabonete era praticamente irrelevante no procedimento de higiene realizado pela jovem. Ao contrário do sabonete, utilizado de qualquer jeito e com bastante pressa, os óleos e cremes possuíam forma prescrita para serem aplicados e alguns minutos eram gastos com cada um deles. O perfume fornecia o “gran finale” ao ritual. Monotonia e insignificância, portanto, marcaram a existência do sabonete por todo o tempo em que ia passando ralo abaixo, até que foi descartado na lixeira do banheiro junto com dejetos dos mais repugnantes. Não há dúvida de que haveria muito mais valor no sabonete caso tivesse sido pego por um vulgar.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Libra Rasa


O homem é essencialmente egoísta, característica cuja intensidade se manifesta de forma inversamente proporcional à dependência de outros para satisfazer as próprias vontades.

Já não me é claro quando ou como foi a última vez que vi imagem como esta. Aliás, entre as tantas coisas que se tornaram escassas, a clareza se destaca em quase todas as suas conotações - se não em todas. A luminosidade é um luxo que só pode ser usufruído em momentos muito raros. Surge apenas quando conseguimos apanhar algo para minorar a fome e, estando ela abrandada, restam as últimas centelhas do fogo construído para tornar minimamente palatável a carne dos animais que encontramos nesse buraco. A imagem que essa pouca luz revela é bastante curiosa, talvez por ser evento raro, como a sensação de saciedade que a acompanha. Vejo as figuras do meu irmão, dela, e do estranho. Cada um, como eu, encontra-se acocorado em um dos cantos dessa caverna. É como se buscássemos nos apropriar de uma das poucas coisas que temos em abundância: espaço. O pensamento está confuso em decorrência do desconforto extremo. Nossos traços fisionômicos acham-se transfigurados pela sujeira e pelo jogo de sombras produzido pelas pequenas chamas, que rapidamente vão se esvaindo. Nessas circunstâncias, parece natural que o espaço onde acostamos nossos corpos seja a única coisa capaz de dar alguma impressão de que, aqui, se pode firmar a individualidade. E quão avidamente a busco...

Não sei até que ponto a memória depende das imagens. Talvez ela seja avivada pela ilusão de que o sofrimento parte quando o estômago ganha algo para digerir depois de tanto tempo sem poder realizar sua atividade. Em outra ocasião, poderia gastar muito do meu tempo com divagações dessa natureza. Mas a lucidez tornou-se rara. Aparentemente minha mente escolheu se fixar nas lembranças envolvendo essas três pessoas que comigo dividem esse espaço, que muitas vezes reconforta ser pensado como o vindouro leito de morte. É estranho reparar que não domino os pensamentos, sempre tão difusos. Como há pouco lembrei, a clareza tornou-se uma estranha. Recordo de estarmos os quatro andando em uma floresta agradável, logo nas primeiras horas da manhã, após breve sereno. Essa soma de fatores fazia crer numa identidade pessoal com aquele ambiente. No entanto, a mata rapidamente foi se fechando, até virar esse breu. Não estou tão louco para deixar de perceber que isso não faz sentido. O caso é que não paira em minha mente qualquer explicação razoável sobre como foi a transição entre lugares tão distintos. Decerto algo muito traumático ocorreu, mas as condições não são as melhores para buscar coerência entre os pensamentos. Ainda, o que soa menos aceitável é eu estar com os três, pessoas pelas quais não nutro muito afeto, compartilhando um momento supostamente agradável.

Mas lembro que nem sempre foi assim. Dos três, ela era quem um dia me fora mais importante afetivamente. Ela surgiu ainda antes de nos acharmos adultos, em dia ordinário em que meu irmão e eu cuidávamos da mercearia de nossa família. Eu fingia não prestar atenção enquanto ela andava pelas prateleiras escolhendo os produtos. Meu irmão nem precisava fingir. Sequer a notara. Quando veio ao meu balcão para efetuar a compra, olhou fixamente em meus olhos. A sensação era sensivelmente desconfortável, especialmente porque eu não conseguia identificar um significado preciso para aquela fixação. Era evidente que se tratava de admiração, mas pelo que? Minha aparência seria uma justificativa, pois costumava causar alguma comoção no sexo feminino. Ocorre que, no caso dela, havia algo diferente. Como a atração que eu exercia me era algo bastante familiar, considerei não se tratar disso. Estava certo?

Em pouco tempo, passamos a frequentar outros ambientes juntos, eu, ela e meu irmão. Os encontros só não eram mais habituais por impedimentos postos por sua família. Ela deixara um noivo na cidade de onde viera. A toda evidência se percebia que esse relacionamento era particularmente caro à sua família. Ela pouco falava a respeito, mas era certo que seus pais não viam nossos encontros com bons olhos. Era como se representassem ameaça a seu noivado. E não parecia mesmo ser uma preocupação infundada. O espírito por trás daquele olhar enigmático persistia. Cada encontro era substancialmente entre eu e ela. Meu irmão era mero coadjuvante, e nem parecia se importar com isso.

Fomos os três para a mesma faculdade. Passamos a compartilhar muito mais tempo juntos. Os pais dela já não pareciam capazes de exercer o mesmo controle. Meu gosto e paixão pelas disciplinas de humanidades pareciam aumentar o charme que eu exercia sobre ela. Quanto ao meu irmão, dividido entre matérias técnicas e financeiras, foi progressivamente se tornando ainda mais alheio. Cada vez mais os encontros eram meus e dela. Isso até o meu irmão ganhar aquele prêmio. Nunca entendi bem o que ele desenvolvera. Tratava-se de algo ligado a internet e direitos autorais. A idéia de pegar um pensamento e atrelá-lo a seu idealizador, como se fosse uma coisa que lhe pertencesse, nunca me pareceu natural. Talvez por isso nunca busquei entender. O que realmente me preocupava era que aquele olhar dela, que eu já julgava parte do meu patrimônio, foi progressivamente se direcionando a meu irmão.

Ainda antes de a faculdade acabar, diversos contratos surgiram para meu irmão. De pronto, ele abandonou nossa mercearia para se dedicar exclusivamente a sua nova atividade. As mudanças pareciam instantâneas. Ela rompeu seu noivado e me largou por completo. Nunca mais me examinou com olhar penetrante, dedicando esse privilégio exclusivamente a meu irmão. Era estranho ser o coadjuvante. Eu tentava chamar sua atenção com as reflexões provenientes de meus estudos. Não surtia efeito. Quando os dois anunciaram seu noivado, entrei em desespero. O dia de seu casamento foi o mais sofrido de minha vida até então.

A miséria que tomou conta de mim era imensurável. Passei uma eternidade buscando entender toda essa história. Foi de repente, no entanto, que tudo fez sentido. Aquele olhar, que outrora me foi tão caro, nunca mirou minha alma. Era apenas para o entretenimento dela, focando no que mais superficial havia em mim. Minha aparência física sempre atraiu a atenção das mulheres, mas sempre me incomodou a idéia de meu valor resolver-se nisso. Porém, era só o que ela buscava. Mesmo quando o que chamava a atenção eram meus discursos sobre os grandes mestres, era a aparência que importava. Tratava-se de um estilo que se manifestava em comportamentos visualmente apreendidos e que agregava valor apenas à minha aparência.

Essa constatação afligia-me sobremaneira, mas era muito explicativa. O que ela sempre buscou em um homem foi estabilidade financeira. Sempre me pareceu que eu era destinado a gerenciar nossa modesta mercearia, e que todos assim me viam. Eu nunca poderia lhe proporcionar o que ansiava. Doía perceber que toda estima que dediquei a ela foi em vão. Ela era pessoa totalmente submissa a seus desejos materiais. Sua personalidade, de tão superficial, gerava-me amargura. Mas o que realmente me atormentava era pensar que eu era igualmente sem conteúdo, um mero vaso ornamental. Seria fácil afastar essa dor atribuindo a ela e sua frivolidade toda a responsabilidade por eu ser assim concebido. No entanto, a mesma luva parecia entrar na mão de uma infinidade de pessoas. As experiências em geral serviam como atestado de minha futilidade. Em breve eu envelheceria e perderia a única coisa que me dava valor. Foram inúmeras as vezes que quis que ela morresse, sobretudo pelas minhas mãos. Ora, ela era a causa do sentimento que mais me dilacerava: o de que, em essência, eu não era nada.

O curioso é que meu irmão, por quem de certa forma fui trocado, sempre foi alguma espécie de nada. Era extremamente metódico e reservado. Podia facilmente ser tido por autista ou um autômato de natureza pouco definida. Algo como um relógio de mola ou uma locomotiva de brinquedo. Estávamos sempre juntos, quer na mercearia, na escola ou na rua. Não nos acompanhávamos apenas nos não raro momentos em que, em casa, detinha-se com seus livros entediantes. Em verdade, eu nunca soube o que abordavam. Nem mesmo ele falava daqueles textos. A paixão que demonstrava pelos livros era a mesma de todo o resto. Meu irmão tinha natureza tão apática que sequer era possível averiguar se algo lhe agradava ou perturbava. E assim foi sempre. Lembro-me de uma vez em que, ainda muito criança, questionei nosso pároco sobre a possibilidade de ele não ter alma. Aliás, isso ocorreu diversas vezes. Cessou apenas quando fui duramente repreendido e obrigado a aceitar dogmaticamente que todo homem possui alma.

Eu bem percebia que isso me beneficiava. No mínimo pela boa aparência e pelo jeito loquaz, quando comparado com meu irmão, eu deveria parecer transbordar vivacidade. Talvez aparentasse até ser um líder nato. Em tudo, o coitado tinha natureza submissa. Qualquer que fosse o ambiente em que se inseria, buscava alguém para lhe dizer o que fazer. Parecia mesmo incapaz de ter pensamentos próprios. Isso certamente contribuiu para aumentar o valor que os outros viam em mim. Fazia tudo o que eu lhe pedia como se fosse uma ordem. E mais, tudo o que meu irmão dizia, em suas raras manifestações públicas, era algo que eu já havia dito anteriormente e com muito mais veemência. Ao fim, era como se fosse um apêndice meu. Pensando agora, minha importância fica, em verdade, absurdamente diminuta quando se tem em conta que fui trocado por ele.

Seus sucessos, tanto o acadêmico quanto o profissional, sempre me pareceram obra do acaso. Sua inaptidão para ter pensamentos autônomos é de todo incompatível com o fato de se sustentar a conta de direitos autorais. Ora, esses assentam na noção de obra, que tem a originalidade como um de seus pressupostos. A mim só faz sentido que por algum processo mecânico, como o do burocrata com seus carimbos, tenha juntado as informações de seus livros sem graça. Os resultados a que chegou só podiam não ter sido desenvolvidos antes pela complexidade do algoritmo que a eles conduziu. Tal hipótese é bastante compatível com sua personalidade autista. Mas, nesse aspecto, minha opinião é de todo irrelevante. Seu sucesso era notório. Os outros, ao invés de apenas demonstrar surpresa, rapidamente descobriram formas de dele se aproveitar.

Era fato que meu irmão era a mesma criatura débil e apática de sempre. Perceber isso ao mesmo tempo que ver seu reconhecimento social superior ao meu era contradição sufocante. Mais que isso, atordoava ver que pela primeira vez eu não conseguia tirar proveito pessoal de sua fraqueza, enquanto todos os demais pareciam fazê-lo com singela facilidade. Não eram escrúpulos ou qualquer outra causa nobre que me impediam. Apenas eu e meu irmão não aproveitávamos seu sucesso. Como isso lhe fora sempre natural, a impressão que me dava era a de que eu era pior que todos, sobretudo que ele. O idiota ao menos ampliou a gama de benefícios que gerava a outros. Por diversas vezes cheguei a querer matá-lo. Assim não haveria como se sobressair a mim. Acho que a imaginação da dor que me causaria um insucesso era a única coisa que me impedia. Talvez não. Acho que, no fundo, eu ainda tinha a esperança de poder tirar proveito da situação.

Agora, se havia alguém que o fazia com magistral habilidade, esse era o estranho. Assim como com meu irmão, eu nunca pude saber seu posicionamento sobre qualquer assunto. Entretanto, o motivo era totalmente diverso, embora ainda hoje eu não o identifique ao certo. Também como com meu irmão, eram raras suas manifestações públicas. Porém, quando ocorriam, ao contrário daquele, era certo que expressava a própria personalidade. Essa, embora muito discreta, era enérgica de maneira transbordante. Tudo nele sempre foi muito misterioso, a começar por seu surgimento, alguns meses depois de meu irmão ter ganhado seu prêmio. Apareceu a pretexto de representar uma grande figura do ramo em que meu irmão atuava, apenas para cuidar de alguns poucos contratos. Em pouco tempo, tratava de toda a parte negocial do empreendimento do meu irmão, que não pareceu ter achado isso ruim. O estranho era figura instigante. Sua mera presença era agradável, ainda que não se pudesse identificar o porquê. O espírito submisso do meu irmão encontrou no estranho alguém em quem apoiar sua nova vida. Isso já não podia ser feito sobre mim, provavelmente por eu ser completo leigo sobre tudo o que envolvia seus negócios.

Em pouco tempo, porém, o estranho foi tomando conta de outros aspectos da vida de meu irmão. No começo, isso não despertou em mim qualquer reação particular. Eu estava muito ocupado tentando buscar algo que me atribuísse valor. A dor que me causava ver todos exceto eu tirando proveito de meu irmão era grande. Não tanto, no entanto, quanto a provocada pela sensação de falta de valor próprio. Houve um jantar em família, porém, em que percebi que ela estava claramente dirigindo aquele olhar, meu velho conhecido, ao estranho. Foi então que percebi que ele estava tomando o lugar que eu ocupava até meu irmão obter sucesso. Em pouco tempo, o estranho atuava como verdadeiro chefe familiar. Eu continuava gerenciando a mercearia, mas ela trazia proveitos econômicos muito modestos. Por isso, o grupo não poderia reconhecer em mim grande autoridade. O estranho, ao contrário, visivelmente maximizava o valor das atividades de meu irmão. Por diversas vezes busquei retirar a autoridade conquistada pelo estranho. Minha estratégia era imputar a ele toda sorte de comportamentos moralmente reprováveis que pude. Eu o fazia mesmo quando não se tratasse de condutas suas. Tudo em vão. Sua geração de bons resultados parecia justificar qualquer defeito. Ainda, eu não conseguia sequer vislumbrar sua essência, sendo inimigo muito superior a mim. Ao fim, só me restava um jeito de sobrepor-me a ele e buscar retomar meu posto: matando-o.

Agora tudo faz mais sentido. Nos últimos anos, essas três pessoas atuaram de maneira bastante eficaz, ainda que não tenham percebido, para me reduzir a nada. Isso me dilacerava e trazê-los para esse covil era a solução de meus problemas. Ali, eu poderia matá-los e ninguém os encontraria. Seria a ocasião ideal para eu poder recuperar um pouco de dignidade. Mas ainda não consigo entender como farei isso. Como viemos parar aqui e como daqui posso sair? O desconhecimento dessas questões tão básicas angustia meu espírito. Será que se trata do contrário? Impossível. Eu já não tenho qualquer relevância social. Não há porque algum deles me querer morto. Já não sou nada. Também não poderia ser o caso de estarmos apenas nos divertindo. Eu não podia fazê-lo com essas pessoas, cuja mera existência me é insuportável. Certamente eu planejei nossa vinda para cá de modo a aparentar mero acidente. O mais provável é que um realmente aconteceu. Agora basta eu me concentrar para trazer à memória os meios para consumar meu plano. Assim como entendi o que estava acontecendo, a nova solução surgirá. É só uma questão de tempo.
 

***
Com essa ideia em mente, sentindo-se aliviado pela esperança de voltar a ser alguém, adormeceu tranqüilamente. As horas se passaram, tornando evidente que a refeição que fizera há pouco apenas criou uma ilusão de saciedade. Seu corpo precisava de mais, e a mente foi paulatinamente definhando. A impressão de que o tempo esclareceria como sair dali e concretizar suas vis ambições foi se mostrando cada vez mais falsa. Mas ele não era capaz de percebê-lo. O processo era o de um alheamento que o assemelhava cada vez mais a um animal. Reflexões sobre valor pessoal, seja como auto-estima, seja como status social, já não pareciam cabíveis. Em verdade, não era a primeira vez que teve aquela série de pensamentos. Toda vez que conseguia alguma espécie de conforto material, surgiam essas cogitações. Acontece que tais confortos estavam cada vez mais raros. Assim, esses episódios eram cada vez mais fugazes e as idéias progressivamente menos concatenadas. Também é certo que não era ele o único a tecer considerações dessa natureza. Os outros três realizavam operações semelhantes, cada um ao modo próprio de sua personalidade. No momento de satisfação das necessidades mais básicas, substituíam-nas por outras. Essas, embora mais sutis, resultavam em tamanha negação de si mesmos que talvez fossem mais intensas que as substituídas. A verdade é que a vida toda foi assim. Ainda que externamente não fosse tão perceptível, havia somente variação de grau. A situação de extrema penúria apenas agravou o quadro.

O curioso é que não era particularmente difícil conseguir o necessário para sobreviver naquele lugar. Ele era um esconderijo feito por escravos mestiços foragidos em tempos bastante remotos. Fora estrategicamente idealizado para prover um pequeno grupo com água, comida e calor por longos períodos. Diversas trilhas de animais silvestres passavam por esse buraco. Tornou-se elemento essencial daquele ecossistema, com o qual se integrava perfeitamente. O conhecimento para a formação dessa simbiose não era técnica conhecida de descendentes de colonos europeus. Os quatro que lá vinham habitando, representantes menores da pequena elite local, sequer sabiam como usufruir as vantagens daquele ambiente. Ironicamente, era a separação entre eles e os nativos, de que tão pomposamente se orgulhavam, que os condenava à sucumbência. De toda forma, o que viviam era verdadeiro pesadelo.

Passando a imensa maioria do tempo na completa escuridão, era curioso o modo como se fazia o preenchimento do conteúdo de suas consciências. Em verdade, subjacente a tudo o que experimentavam, estava a única constante que se encontra em qualquer situação – e que, abstratamente, pode ser caracterizada como um imenso vazio urgindo por preenchimento. Na situação em que se encontravam, no entanto, os próprios elementos básicos a partir dos quais a experiência era construída já são usualmente caracterizados como negativos. Diversas sensações eram velhas conhecidas e independiam da visão: frio, fome e medo, eram apenas algumas. Mas a mente não se contentava com isso. Buscava associar imagens a elas. Para tanto, não conseguia separar memórias de aspirações O resultado era figuras surreais e desesperadoras. No mais das vezes, eram as criaturas que lhes serviam de alimentos que vinham cobrar sua contrapartida, retirando partes de seus corpos. O que restava era tornado inerte por espessas brumas azuis que lentamente envolviam seus corpos. As lareiras de suas antigas residências e os grandes banquetes servidos nas festas eram vigiados por juízes que lhes lançavam olhares de repreensão como se deles não fossem merecedores. Na prática, estavam cada vez mais ineptos. O efeito era o de estarem sendo lentamente devorados.

Eram patéticas suas habilidades para conseguir o que, nos eventos sociais que frequentavam, chamavam de “mínimo existencial”. A expressão era parte de discursos de justificação ética de suas próprias práticas usurpadoras daqueles a quem tal mínimo deveria ser conferido. Não estavam em condição, no entanto, de perceber que disso se tratava. Estavam em estado animalesco. Não era razoável exigir deles qualquer reflexão minimamente elaborada. Mesmo os conflitos existentes entre si, objeto de seus pensamentos nos raros momentos de saciedade, já não apresentavam grande relevância. Todos os rancores foram progressivamente sendo postos de lado para formar um vínculo cooperativo que até então desconheciam. Nada mais natural. Por menor que fosse o animal abatido, nenhum dos quatro conseguia exaurir sozinho a carne que dele se retirava. O sucesso individual gerava, por contraditório que seja com o quadro de escassez, um excedente. Esse, no entanto, não podia ser apropriado pelo vencedor, pois as condições precárias em que se encontravam não permitiam o armazenamento útil. Servia, então, apenas para saciar as necessidades dos demais. O êxito pessoal era sempre imprevisível. Fazia-se impossível que qualquer deles pudesse se assegurar da capacidade de auto-suficiência. Assim, progressivamente perceberam que em conjunto formavam uma unidade produtiva muito mais eficiente. Mas não de maneira racional. Foi em seus inconscientes que se ia consolidando a privação de toda individualidade e a formação de uma unidade grupal. Os momentos de saciedade já não ensejavam pensamentos de adversidade de um para com o outro. Essa solidariedade foi crescendo em assustadora progressão, tornando-os cada vez mais eficazes para promover sua subsistência. Assim foi até que o último deles sucumbiu naquele buraco. Sim, a cooperação foi útil, mas chegou tarde demais.